Avatar: O Caminho da Água é cinema na forma pura, que transcende a tela (2022, de James Cameron)

Sim, eu sei, o título do texto parece um tanto indulgente. Assim como alguns cineastas, como James Cameron, também parecem ser. Assim como dizer que tal filme “é cinema puro” gera certa discussão sobre o que seria essa pureza cinematográfica. O cinema é a imagem em movimento, sem explicações, sem desculpas, é a imagem por si só sendo apreciada. Esse conceito mais clássico e intelectual, quase abstrato, da imagem por si só, é uma coisa que às vezes quase se perde no decorrer dos anos, quando se possui nos holofotes essas grandes sagas cheias de narrativas e personagens, ideias mirabolantes e filmes vencedores do Oscar cheios de diálogos incríveis. Tudo isso é muito bom, tudo isso é cinema.

Mas um cineasta nunca deve perder de vista um fator inestimável, aquele que fica na nossa memória após assistirmos a um grande filme: a imagética, a imagem por si só, seja em uma história narrada, seja até mesmo na falta de uma história. Falta de uma história? Sim, afinal quantos filmes, do clássico mudo aos experimentais recentes, do documentário à ficção, não trazem narrativas claras, mas impressionam pela captação das imagens na câmera? Isso também é cinema de qualidade. E filmes assim também possuem um bom roteiro. A Chegada do Trem na Estação, de 1895, considerado o primeiro filme da história do cinema, é apenas uma câmera captando o cotidiano da estação, passageiros vem e vão. Assim nasceu o cinema, e mudou o mundo para sempre. Mad Max: Estrada da Fúria é ação pura, uma sequência interminável de perseguições, e seu roteiro é excelente, pois consegue algo raro: desenvolver mundo, personagens e situações na base da adrenalina. Nascia ali o que é considerado o melhor filme de ação de todos os tempos até agora.

Aliás, quanto ao roteiro, muitos o confundem com diálogos, ou originalidade, o que são coisas completamente diferentes. Um bom roteiro pode escolher dizer algo ao público através de um diálogo entre personagens (filmes do Scorsese ou Tarantino), ou apenas através de uma silenciosa cena (Nosferatu, Wall-e). E originalidade é criatividade, seja na escrita do roteiro, seja na forma que a história será narrada visualmente pelo diretor. Dizer que algo é original hoje em dia é complexo, devido à imensa quantidade de histórias que o cinema já nos narrou, praticamente de todos os tipos, mas vez por outra algum filme traz diversos clichês emaranhados de forma criativa (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo), o que dá pra julgar ao seu modo, como algo original. Um bom roteiro engloba tudo em um filme, não precisa ter diálogos complexos ou originalidade de sobra. Um bom roteiro pode sim ser um clássico clichê e se sobressair na forma visual com que um filme é mostrado, afinal, o roteiro é a parte escrita na pré-filmagem, e a mágica de verdade acontece no momento que a câmera roda e externaliza as páginas do roteiro. Um filme lindo esteticamente ainda é fruto de um bom roteiro, cuja proposta foi a experiência visual.

Toda essa minha introdução serve apenas para basear com fatos históricos e cinematográficos aquilo que vou escrever agora. Avatar: O Caminho da Água é uma obra-prima e um tipo de cinema na sua forma pura, a imagética por si só, sem pedidos de desculpas, e é impressionante. É aquela obra que vai além de ser apenas um filme, ela se torna uma experiência visual e sensorial, para ser experimentada, vivida, sentida no cinema. Transcende a tela, não só literalmente pelo 3D, mas de forma quase espiritual, é algo para ser presenciada pessoalmente e é algo para se gabar às futuras gerações. É o tipo de filme que cria uma geração de novos cinéfilos, apaixonados pela sétima arte.

Não foram poucas vezes que James Cameron impressionou o mundo, dominou as bilheterias e virou sensação no Oscar. O Exterminador do Futuro (1984), Aliens, O Resgate (1986), O Segredo do Abismo (1989), O Exterminador do Futuro 2 – O Julgamento Final (1991), True Lies (1994), Titanic (1997) e Avatar (2009). Ação impressionante, efeitos especiais inovadores desenvolvidos pela sua própria equipe, criação de mundos fantásticos, senso de urgência e catástrofe, raros casos de continuações melhores que o primeiro filme, dentre outras questões. Com Titanic, Cameron ganha seu Oscar de Melhor Diretor, dos onze prêmios conquistados pelo filme. Com Avatar, Cameron revoluciona a imagem do cinema, os mundos de fantasia, a computação gráfica, a captura de movimento dos atores e o uso espetacular do 3D, uma tecnologia já antiga e anteriormente fracassada.

Treze anos depois, desenvolvendo técnicas ainda melhores, Cameron entrega seu aguardado Avatar: O Caminho da Água e impressiona ainda mais, seja pelo 3D, seja pela criação de mundo. Tudo retorna ainda mais palpável, mais completo, mais detalhado. A profundidade e a escala das cenas é inacreditável. Um ultrarrealismo confunde seu cérebro, pois realmente parece que aquela lua, os nativos, a fauna e a flora, que tudo isso é realmente real, parecem de fato seres vivos bem na sua frente, ampliados por um impressionante uso de 48 frames por segundo, ao contrário dos normais 24, deixando tudo ainda mais realista. É quase um teatro, um concerto, um show cinematográfico ao vivo. E tudo isso, a imagem por si só, já bastaria. Mas não para por aqui.

A história, a tal da trama de Avatar que muitos dizem pela internet ser fraca, é ainda melhor, mais forte que a do primeiro, que já era boa. Dentro da proposta de Cameron, existem apenas algumas limitações. E essas limitações se devem ao conceito de franquia. Pois sim, Cameron planeja até o quinto filme, no mínimo. E é justamente pensando no conceito de franquia, que algumas escolhas narrativas e alguns destinos são indecisos e abertos, similar ao que Star Wars, Marvel e DC fazem em suas sagas e poucos criticam. Mas o roteiro dessa segunda aventura ainda é melhor que o do primeiro, trazendo mais detalhes e aprofundamentos no que tange mundo, costumes e crenças. Até o caricato vilão ganha um pouco de dimensão. Ainda há espaço para melhorias, mas é algo que está sendo construído.

O foco nos filhos de Jake e Neytiri é um acerto, especialmente o destemido Lo’ak e a maravilhosa Kiri, que roubam o protagonismo com força. Os jovens são carismáticos e acompanhamos as novidades e mudanças sob suas óticas. Há também Spider, um jovem humano abandonado em Pandora e amigo da família, que trará um dilema ambíguo e de potencial. Aqui, o roteiro se dá ao luxo de brincar um pouco com o conceito de paternidade, criando conflitos interessantes.

Missão pessoal da vida de Cameron, a ecologia está ainda mais presente. Seu fascínio pelo mar traz as mais impressionantes cenas aquáticas já apresentadas, é de tirar o fôlego. É como se o público estivesse mergulhando junto. Se no primeiro longa tivemos a flora como ponto de ruptura, aqui temos a fauna aquática. Uma espécie de baleia alienígena se torna o foco ambiental, central e dramático, e é impressionante como apesar de ser uma criatura em CGI, sentimos ela como de verdade. Existe realmente emoção e paixão aqui, e esse é um dos motivos de Avatar não ser “tão original” assim (e nem precisaria ser).

Avatar traz na sua simplicidade a identificação com o mundo real, as árvores que queimam de verdade, a baleia que é caçada de verdade. Essa identificação com o meio ambiente humano é a real meta de Cameron, para que ele possa fazer sua defesa, seu alerta sobre o quanto estamos destruindo nosso planeta, e automaticamente, acabando com o nosso próprio futuro. Isso é um fato, e está em curso, e Avatar é uma vitrine cinematográfica de milhões de dólares, onde o cineasta esfrega essa verdade em nossa cara. Esse tal “clichê” que muitos apontam é a nossa realidade, e em tempos de desinformação e falta de interesse, ser direto e simplista nisso faz-se necessário para captar a maioria das pessoas, as massas. Sim, é um apelo emocional que poderia ser brega, mas como um experiente cineasta que trabalha com arcos dramáticos mais clássicos, Cameron, assim como Spielberg, sabe chegar no limite do brega, da chantagem emocional, do clichê, e manipular tudo favoravelmente a ponto de virar a melhor coisa do mundo.

“I see you”, ou “eu vejo você”, a frase tema da franquia, é literalmente um convite a enxergarmos de verdade aquilo que está ao nosso redor, especialmente a natureza e sua beleza. De certa forma, James Cameron clama para que depois do filme, larguemos o óculos 3D e olhemos a beleza natural que nos cerca, e que estamos destruindo. Essa mensagem fica ainda mais evidente nessa segunda aventura.

Como todo bom filme que se preocupa em construir um novo mundo, O Caminho da Água flui de forma suave, contemplativa, deixando-nos degustar das paisagens, das árvores, dos animais, dos nativos e seus costumes. Mas nunca chato, nunca cansativo. Ao contrário, as três horas passam voando, pois sempre há muito o que olhar, o que se encantar, o que absorver, tamanha riqueza da imagética. Apesar da ação eletrizante do terceiro ato, há tempo de respiro, para que emoções sejam sentidas, e isso é ótimo, evitando que seja só mais um filminho de pancadaria. Destaco especialmente o segundo ato da obra, onde somos completamente submersos aos ricos detalhes aquáticos.

E claro, quando Cameron traz a sua famosa ação, ela é igualmente e proporcionalmente impressionante, beleza e destruição possuem o mesmo peso, ambas de cair o queixo. Ninguém filma ação como James Cameron, isso precisa ser dito. A mecânica, as máquinas, as armas, naves, barcos, tudo tem um peso opressor, contrapondo com a leveza da natureza. Você sente o peso das ondas da água batendo, você sente o coice dos tiros, o peso dos gigantes animais, tudo impressiona pelo realismo físico e geográfico da ação, é formidável, e a câmera não nos poupa de enxergar tudo da forma mais linda ou amedrontadora possível. São detalhes únicos, seja no efeito de pós-produção ou na angulação da câmera, que faz com que se identifique o jeito do cineasta filmar. Titânico, magnífico.

A fotografia mais uma vez é brilhante, ainda mais impactante, profunda, iluminada e com cores naturais do que antes. A trilha sonora é assinada por Simon Franglen, que substitui o falecido e maravilhoso James Horner do primeiro filme, mantém o legado de Horner, é emocionante e ajuda a dar o tom à obra. O elenco está ótimo e consegue entregar fortes expressões faciais nos seus “avatares”. Zoe Saldana é a melhor em cena, seja na expressão ou no seu fabuloso trabalho vocal. Sam Worthington, um ator um tanto limitado, apresenta forte amadurecimento. Sigourney Weaver e Stephen Lang retornam de formas inesperadas e engenhosas. Kate Winslet, voltando a trabalhar com o diretor depois de Titanic, entrega um dos momentos mais dramáticos da obra.

Avatar: O Caminho da Água é brilhante tecnicamente, com o visual mais impressionante que o cinema já trouxe até aqui, em um filme com um roteiro ainda melhor, aprofundando ambientalismo, laços familiares e senso de pertencimento. O discurso é deveras simplista, mas efetivo e realista. O óbvio é dito de forma óbvia, mas sempre necessário e visualmente deslumbrante. Obra-prima, que ficará com você após a sessão, deixando expectativas sólidas para as continuações. Merece todo sucesso que inevitavelmente fará.

É a imagem por si só, é o cinema por si só.

Título Original: Avatar – The Way of Water

Direção: James Cameron

Duração: 190 minutos

Elenco: Zoe Saldana, Sam Worthington, Sigourney Weaver, Stephen Lang, Cliff Curtis, Joel David Moore, CCH Pounder, Edie Falco, Jemaine Clement, Giovanni Ribisi e Kate Winslet.

Sinopse: Doze anos depois de explorar Pandora e se juntar aos Na’vi, Jake Sully formou uma família com Neytiri e se estabeleceu entre os clãs do novo mundo. Porém, a paz não durará para sempre.

Trailer:

Está esperando o quê para presenciar esse grande filme numa telona de cinema?

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