Noites de Paris (2022, de Mikhaël Hers)

Mais uma grata surpresa do cinema francês, com estreia dia 20/10/22, que nos apresenta de forma simples uma história intrigante com grandes atuações e identificação por parte do telespectador.

No longa, somos apresentados a Elizabeth (Charlotte Gainsbourg) e seu pequeno núcleo familiar contando com seus filhos, a politizada e militante Judith (Megan Notham) e o sensível porém questionador do mundo Matthias (Quito Rayon Ritcher), seu pai Jean (Dieder Sandre) que constantemente a visita e a agregada Talulah (Noeé Abita). Elizabeth, enfrentando seus dilemas de mulher madura, com dois filhos desenvolvendo-se de forma independente e precisando se reinserir no mercado de trabalho, encontra no programa de rádio que a conforta em momentos de insônia uma oportunidade de trabalhar e por mais uma, e quem sabe uma última vez, se abrir para o mundo que ora a decepciona, ora a faz sentir culpada na esperança de construir algo bom e novo nos cacos que se vê obrigada a catar. E é por causa deste programa que Elizabeth encontra Talulah e a torna parte de sua família como se fosse, de certa forma, uma oportunidade de fazer as pazes com sua versão de 20 e poucos anos pois de certa forma, Talulah e Elizabeth são imagens espelhadas uma da outra: diferentes em fundamentalmente tudo, mas que partilham da mesma necessidade de cumplicidade e compreensão.

A história se passa nos anos 80, mas sem nenhum tipo de nostalgia forçada ou marcação de tempo usando de recursos batidos, apenas por pequenas filmagens, figurinos e algumas legendas é que percebemos se tratar do início dos anos 80, e que parece ser relevante para os realizadores. O tom intimista e delicado da película nos faz conhecer os personagens mesmo que nem tudo sobre eles seja exposto visual ou verbalmente, então a nossa capacidade de dedução é apurada quando nos antecipamos aos comportamentos e diálogos por já conhecermos minimamente essas personas.

A amorosa Elizabeth, o generoso e presente Jean (seu pai), a obstinada e genuinamente politicamente engajada Judith, o empático e romântico Matthias e a complicada e ao mesmo tempo ingênua Talulah formam um núcleo familiar de pessoas amáveis não por sua amabilidade em si mas porque ao longo da trama vamos deixando de ser meros estranhos e passamos a sentir, perceber e capturar cada um deles individual e coletivamente. Elizabeth além do convívio doméstico, trabalha em seu programa de rádio favorito à noite e em uma biblioteca durante o dia, onde inclusive conhece seu namorado (interação essa que enche a tela do mais puro afeto romântico na maturidade, onde vemos dois adultos já maduros se envolvendo lindamente e sem dramas desnecessários); assim, temos a completude da vida de nossa protagonista tão bem interpretada por Charlotte que acreditamos ser Elizabeth alguém que poderíamos conviver. A mulher que começa o longa atolada, perdida, angustiada e temerosa pelo seu eu próprio vai se tornando uma mulher independente, autoconsciente, profissional, amante, amiga e admirada pelos filhos (algo que se reflete nas pequenas sutilezas entre as interações individuais que a mãe tem com cada um, e numa cena particular em que ela dá a cada um dos filhos um objeto pessoal com significados específicos; e a reação deles é primorosa).

As atuações são boas e consistentes, ainda que a protagonista se destaque por ser ninguém menos que a musa francesa de Lars von Trier e por surpreender neste papel tão diversificado para uma atriz que já fez muitas personagens desafiadoras e polêmicas – e de maneira nenhuma estou dizendo que a protagonista deste longa é menos intrigante que as demais icônicas mulheres materializadas por Charlotte, pois interpretar mulheres reais com substância demanda uma conexão com esta mulher do papel para que ela se concretize na tela. E Charlotte faz Elizabeth ser tão crível quanto complexa -, de maneira que temos um elenco equilibrado e que funciona como um todo. Os atores conseguem dar personalidade às suas personagens e sem que pareça uma força direcionada, eles interpretam pessoas que existem como se as fossem de forma tão natural que por vezes esquecemos que estamos num filme.

Por falar nisso, as pessoas representadas vão várias vezes ao cinema, ao parque, a biblioteca, andam de bicicleta, a vida real é mostrada em toda sua beleza pueril dando contornos glamourosos à normalidade do cotidiano, o que dá um certo frescor à linha do tempo (como na própria vida, depois de uma semana inteira trabalhando em dois empregos o prazer de sair sem compromissos aguardando só para fazer o que quiser por algumas horas é mesmo refrescante frente o abafamento que as responsabilidades causam).

As imagens gravadas como de um arquivo pessoal, em sua grande maioria cenas noturnas e de estrada, podem parecer deslocadas, mas depois de avaliarmos o longa como uma peça única podemos interpretar essas inserções como uma maneira de expressar a relevância do cotidiano e de situações comuns a todos que embalam esse núcleo; ainda, pode ser uma forma dos realizadores deixarem uma impressão digital e mais: pode ser uma maneira de indiretamente dizer que parte se não toda a obra foi inspirada na vida real de uma ou várias pessoas.

O filme poderia desaguar num drama tenso e tempestuoso devido ao contexto em que Elizabeth e seus filhos se encontram quando a mesma conhece e abriga Talulah, mas a mão suave do roteirista não faz com que as nuances dramáticas e os conflitos e diálogos difíceis abafem a profundidade e beleza dos laços afetivos que a domesticidade proporcionou a estes, pois ao se findar a obra, vemos com clareza que essas pessoas se amavam entre si.

Vale a pena conferir mais uma obra francesa fantástica e minimalista, com a qualidade que essa última onda de filmes franceses/francófonos vêm apresentando.

Título Original: Les passengers de la nuit

Direção: Mikhaël Hers

Duração: 111 minutos

Elenco: Charlotte Gainsbourg, Megan Notham, Quito Rayon Ritcher, Dieder Sandre, Noeé Abita

Sinopse: Depois de ser deixada pelo marido, uma mãe solteira é responsável por criar seus dois filhos adolescentes. Aceitando um segundo emprego em um programa de rádio noturno, ela conhece um adolescente problemático que ela convida para sua casa.

Trailer:

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