Crítica: Marte Um (2022, de Gabriel Martins)

No começo de Marte Um, ouvimos fogos de artifício em Contagem – região metropolitana de Belo Horizonte -, seguidos pela notícia da eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república. Ao longo do filme – candidato brasileiro ao Oscar de 2023 -, o presidente só é lembrado em uma outra ocasião, em que dois personagens assistem sua posse. Para alguns, pode parecer uma politização gratuita da narrativa, mas o longa entende que a eleição de Bolsonaro – junto com o neoliberalismo desenfreado que teve início no governo Temer e foi intensificado nos anos de Jair – impacta as famílias pobres e de classe média do Brasil de forma fundamental, mesmo que, por vezes, indireta ou não explicitada.

O filme acompanha os membros da família Martins, seus problemas, sonhos, traumas e decepções. Enquanto a filha, Nicinha, se preocupa sobre a aceitação dos pais em relação à sua sexualidade, a mãe, Tércia, lida com a busca por emprego e o estresse pós-traumático após cair em uma pegadinha de televisão. Wellington, o pai, trabalha como caseiro em um condomínio e sonha que o filho, Deivinho, se torne jogador do Cruzeiro, mas este nutre secretamente o sonho de virar astronauta.

Conduzindo uma história simples com uma autoralidade tremenda, o diretor Gabriel Martins prioriza os personagens mais do que qualquer trama. Fazendo o possível para dar uma igualdade de atenção a todos os membros da família, o cineasta também usa a câmera para nos mostrar o que de fato importa em cada cena. Na cena em que Tércia está contando para a família sobre a pegadinha que tanto a afetou, ninguém leva o caso a sério, e Martins escolhe focar a câmera no rosto de Tércia em primeiríssimo plano, quase nos dando um vislumbre de sua alma, e mostrando que o que importa na cena é o que ela está sentindo, e não o que os outros acham.

A mesma lógica é usada em um momento no qual Wellington está sofrendo uma acusação da qual não é culpado, mas acaba sofrendo as consequências. O que importa é sua reação ao que está sendo dito, o desespero pelo qual ele é tomado, e não as acusações, que, apesar de compreensíveis, não são verdadeiras.

Outro subtexto trabalhado pelo filme sem precisar verbalizá-lo em momento algum é o da representatividade. Apesar de ser pressionado pelo pai para seguir a carreira de jogador de futebol – que, além de ser um sonho do pai, é vista por muitas famílias pobres e negras como a única oportunidade de ascensão social -, Deivinho se fascina por astrofísica ao assistir vídeos do astrofísico negro Neil deGrasse Tyson e deseja seguir essa carreira, sendo encorajado a isso especialmente após ver a propaganda do programa Marte Um, da NASA, que levará uma garota negra a Marte no ano de 2030, para tentar colonizar o planeta.

Apesar de tratar de temas socialmente muito relevantes e ter cenas com um tom bastante sério, esse tom nunca se torna pesado ao ponto de deprimir seu público. Pelo contrário; algumas cenas chegam a causar gargalhadas – como aquela que envolve um clássico entre Cruzeiro e Atlético-MG, que é uma aula de decupagem em uma cena de comédia.

O sucesso do longa também se deve, em grande parte, ao excelente trabalho de todos os atores, que tem imensa química e conquistam a simpatia do público de primeira. Enquanto Rejane Faria consegue diferenciar totalmente sua personagem antes e depois do trauma que sofre, por meio de trejeitos, postura e expressões, Carlos Francisco adiciona um carisma inigualável a seu personagem, um pai de família dedicado, que por vezes erra com os filhos, mas sempre visa o melhor para a família.

O casal de filhos não fica atrás: Camilla Damião encarna todas as ansiedades inerentes à idade de sua personagem com uma sensibilidade tremenda, além do amor que sente por toda sua família, e, especialmente, o carinho que sente por Deivinho, com quem preza uma linda relação. Cícero Lucas, por sua vez, convence como o garoto calado e sonhador que se sente pressionado a seguir uma carreira pela qual não tem o mínimo interesse. Ainda, o filme conta com a curiosa e competente participação do ex-jogador Juan Pablo Sorín, ex-jogador e ídolo do Cruzeiro, interpretando a si mesmo e tendo um papel importante na trama.

Remetendo a obras como Um Limite Entre Nós e a filmografia do cineasta britânico Ken Loach, Marte Um é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. De certa forma, é simbólico do cinema brasileiro de resistência, que se intensificou após a eleição de Bolsonaro, e já é um capítulo importante na história de nossa filmografia. O lindíssimo final remete à frase que se tornou lema para aqueles que, como a família, seriam negativamente afetados ou perseguidos pelo governo eleito em 2018, e que continua mais necessária do que nunca: ninguém solta a mão de ninguém.

Título Original: Marte Um

Direção: Gabriel Martins

Duração: 1h55

Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, Juan Pablo Sorín, Russo Apr, Dircinha Macedo, Tokinho

Sinopse: Uma família negra da periferia de Contagem, Minas Gerais, busca seguir seus sonhos em um país que acaba de eleger como presidente um homem de extrema-direita, que representa o contrário de tudo que eles são.

E você, já assistiu a Marte Um? Acha que o filme tem alguma chance no Oscar de 2023? Deixe seu comentário e obrigado por ter lido!

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