Casa de Antiguidades e a hipocrisia do Sul do Brasil (2020, de João Paulo Miranda Maria)

Dirigido com competência por João Paulo Miranda Maria, Casa de Antiguidades vem passando por diversos festivais de cinema desde 2020, incluindo o de Cannes, mas somente agora estreou nos cinemas do Brasil. Torço para uma maior visibilidade, já que a trama dialoga diretamente com traços sociais que precisam ser debatidos no Brasil atual.

A trama mostra o trabalhador Cristovam, homem negro e quieto, que se muda para o Sul do Brasil (não especificado exatamente) por causa do emprego. As diferenças culturais da localidade logo tomam rumos sinistros, nesse drama introspectivo, que flerta com o suspense e terror. De maneira quieta e sutil, em poucos minutos de exibição, os simples olhares e diálogos onde os brancos intrinsicamente se acham superiores a Cristovam, logo se tornam atos explícitos e terríveis.

A partir de então, uma série de perseguições e provocações são colocadas contra o protagonista, que busca nas suas raízes a sua força. Mas até suas raízes são confrontadas, atacadas e violentadas, levando ele a perder o juízo – com razão. Em algum ponto a sutileza é abandonada em prol da obviedade, para depois disso entrar de vez na alegoria e metáforas, até mesmo folclóricas. Daí talvez exista talvez o único problema do filme e certa desconexão entre alguns fatores, principalmente no ritmo e no aprofundamento dos acontecimentos no roteiro. Mas fora isso, é uma experiência que dá o que pensar.

O elenco todo é comprometido, mas é Antonio Pitanga que carrega todo o filme e peso nas costas. Com uma atuação contida na medida certa, mas explosiva no terço final, sentimos sua angústia e fúria, até mesmo sua loucura, que de loucura não tem nada, loucura é aquilo que oprime ele. É realmente um desempenho impressionante.

É interessante ver presente no filme alguns devaneios do Sul do país, como seu orgulho (arrogância) de se achar mais europeu que o restante do Brasil, de se achar elite, com mais recursos, de ter uma vontade de se emancipar e separar do restante do território nacional, de ridicularizar os de outros estados, de criar desde pequenos as suas crianças nesse sistema de superioridade. Um ar de superioridade não apenas em relação a outras pessoas, mas também a vida animal. Cria-se desde já crianças arrogantes e violentas (note que as crianças brancas e de classe média/alta já tem acesso a armas como se fossem brinquedos).

O roteiro é provocativo ao retratar o pior do ser humano, os antagonistas que aqui são os sulistas, levando a trama ao extremo. A fotografia soturna ajuda a criar o clima opressivo necessário para harmonizar a trama, assim como a direção de João Paulo Miranda Maria é objetiva e limpa, até mesmo nas cenas escuras, sempre tudo bem observável e de plena capacidade de enxergar-se o que está acontecendo. Assim como que a maioria das críticas sociais também são claras de entender. Talvez o que mais ficará restrito narrativamente falando seja a questão folclórica goiana, é preciso pesquisar caso não se conheça a região, para entender melhor o terceiro ato.

Esteticamente bonito e simples e com trilha sonora bem orquestrada, Casa de Antiguidades é mais um belo filme nacional que visa questionar aquilo que nos divide, aquilo com que está fazendo nossa política, cultura e nosso povo regredir. Muitas vezes são coisas pautadas como novas, heroicas, como vantajosas financeiramente, como de bem e de família, justamente aquelas coisas que corroem e dividem, aquela velha contradição do conservadorismo que nada cria, tudo regride. De novo não há nada, são velhas coisas, uma casa de antiguidades, baseadas em passados violentos e mórbidos, que nunca deveriam voltar. Visam o futuro saudando o passado, enquanto na realidade estão atolados na lama social e com mãos sujas de sangue, escondendo sua real natureza. Pura hipocrisia.

Este que vos escreve é gaúcho e sempre foi muito observador quanto as nuances e comportamentos do meio que vive. E praticamente tudo retratado no filme já presenciei pessoalmente, especialmente o ar de superioridade do Sul e a vontade de se separar do restante do país. Em tempos obscuros, com o racismo aflorando tão orgulhosamente em representantes e aqueles que o seguem, especialmente em estados do Sul (e vizinhos Sudeste), fica o alerta de que esses pensamentos ideológicos alucinados e deturpados já não pertencem mais ao mundo hoje, já não pertencem ao futuro. São antiguidades abomináveis que devem ser enterradas no passado.

Título Original: Casa de Antiguidades

Direção: João Paulo Miranda Maria

Duração: 87 minutos

Elenco: Antonio Pitanga, Ana Flávia Cavalcanti, Sam Louwyck, Aline Marta Maia e Gilda Nomacce

Sinopse: Cristovam é um “caipira” do interior do Brasil que busca em outras terras melhores condições de trabalho. Mas, o contraste cultural e étnico da nova morada em relação à sua terra natal provoca no vaqueiro um processo de solidão e perda de identidade. Boatos e maldades dos habitantes locais o levam ao desespero e a decisões equivocadas, fazendo-o perder a razão e a lucidez. Sem saída, ele passa a reviver o passado para suportar o presente.

Trailer:

Assista ao filme, prestigie nosso cinema e cultura nacional!

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