Crítica: Ela e Eu (2022, de Gustavo Rosa Moura)

Na sequência inicial de Ela e Eu somos apresentados a um vídeo de arquivo, incomode a quem for evidenciando a dor presente no milagre da vida: o nascimento. Tudo apaga. Começa a tocar João e Maria, na voz de Chico Buarque, certamente escolhida pela reflexão da letra que, dentre outras coisas apresenta uma visão infantil sobre a separação de adultos. Isso é cinema! Fotografias de uma criança expõem uma linha temporal onde aos poucos ela vai crescendo e somos tocados por áudios de palavras doces numa voz de criança, contando situações cotidianas, pequenas conquistas, ao que parece ser uma filha conversando com a mãe que não pode responder. Então, um salto discreto no tempo e somos apresentados a uma zona de conforto que as personagens estão imersas sem perceber.

Eis a magia do tempo. Vinte anos se passaram e Bia (Andréa Beltrão), está em situação vulnerável, sob os cuidados de uma família que não é mais a sua. No mesmo teto, o marido Carlos (Eduardo Moscovis) agora é ex e vive com outra, Renata (Mariana Lima), uma personagem sem muito aprofundamento de início, mas que aparentemente é uma mulher com pressa e preocupada em manter a própria zona de conforto e nada além. É aquilo, se não sabemos com muita clareza os objetivos das personagens eles parecem tão reais a ponto de ficarmos com o pé meio atrás.

A filha crescida abdica de muito para cuidar da mulher a qual sequer chama de mãe, criando até mesmo uma experiência imersiva e sensorial de simulação de praia, tocando-lhe piano, e sempre conversando, na crença de sua presença e percepção como uma alma capaz de escutar e sentir. Há também a presença de uma atenciosa cuidadora que está sempre presente, interpretada por Karine Teles.

O som é muito bem pensado. O trabalho de Carlos trabalhando na oficina de marcenaria, o sexo do casal que pode ser ouvido através das paredes da mulher que se encontra imóvel na cama. Chega a incomodar. O som está ali, presente, ouvimos e não podemos fazer nada, tão imóveis quanto Bia. Posteriormente, quando o filme muda o tom para a redescoberta, o som pode ser ouvido nesse mesmo sentido. O que de certa forma simboliza a vida acontecendo. Seguindo esse raciocínio não posso deixar de dizer que é finalmente um filme brasileiro com uma cena de sexo (curta, mas) com função narrativa. Nos faz pensar “ela está incomodada com isso, não está? Afinal, é o ex-marido dela. Mas enfim, a vida seguiu.” É conflituoso e inteligente.

Para tal, a interpretação de Andréa Beltrão é fascinante. Uma das maiores atrizes do país fazendo o que sabe, com sutileza e belas construções de subtextos. Aliás, todos do elenco são incríveis. Óbvio que se destaca essa conversa entre o corpo do ator que precisa se colocar numa presença de espírito mais frágil, mesclando a emoção sustentada nos olhos brilhantes de Andréa. Mas são todos incríveis, admiráveis, naturais, e essas palavras são fúteis para resumi-los. Entram numa cena sabendo onde estão e para onde vão. O coloquialismo do roteiro facilita também. É poético, é humano. E parte de uma premissa que cria conflitos internos gigantescos entre as personagens.

Um incidente incita a reviravolta na vida dessa família. Bia acorda e retoma a consciência, feito um milagre. Ela precisa se readaptar, reaprender nomes de coisas que esqueceu, e o filme mostra sua razão de existir. É sobre reviver a experiência de estar vivo, dos conflitos entre a emoção natural que progride de uma vida tediosa até a empatia com o próximo. É sobre poder tocar outra vez, a nostalgia de um vazio de anos de silêncio onde tudo parecia mais fácil. É aí que podemos notar o arco das personagens. No início poderia ser uma boa ideia Bia acordar, mas quando ela de fato acorda parece que estava mais fácil antes, pois o tempo tornou mais suportável a condição dela, como se fosse mais simples lidar com uma mulher que não fala do que precisar conviver com uma adulta tão vulnerável quanto um bebê.

Pois então, o roteiro falha em termos de estrutura convencional, daquelas em que um alter ego crítico talvez pudesse perder tempo se dispondo a expor jargões técnicos, mas esse filme especificamente vai muito além do que isso, e no final de contas não passa de gosto. Há público que possa ser enfeitiçado pela condução exercida com a direção elegante de Gustavo Rosa de Moura (Cora, 2021), há público que admire conflitos internos com uma progressão dramática de beats que se interrompem e se perdem na poesia, pairando no íntimo das personagens e seus olhares gritantes. É lindo, é realmente lindo, e certamente feito com o carinho e cuidado de lapidar um drama familiar, onde nem tudo se resolve como se quer (e isso já diz tudo).

Sinto que Gustavo Rosa fez o filme que queria, com uma direção simples, leve, de escolhas inteligentes de enquadramentos sempre nas personagens certas, no momento certo, mostrando bem o incômodo sobre a presença de um estranho que sempre esteve presente. O filme é sobre aquilo da sequência inicial, é sobre a vida, e a vida é sobre nascer, renascer e prosseguir se readaptando. E por fim, o que é a zona de conforto?

Título Original: Ela e Eu

Direção: Gustavo Rosa de Moura

Duração: 140 minutos

Elenco: Andréa Beltrão, Eduardo Moscovis, Lara Tremouroux, Mariana Lima, Karine Teles, Jéssica Ellen

Sinopse: Há 20 anos, Bia entrou em coma no momento do nascimento de sua filha, mas isso não impediu que por todo esse tempo ela tenha feito parte do dia-a-dia da família, mesmo que desacordada. Um dia, extraordinariamente, Bia acorda e provoca uma mudança radical na vida de todos que estão a sua volta. Enquanto ela precisa reaprender a falar, a andar e a se relacionar, sua filha já adulta, seu ex-marido e a atual mulher dele terão de se readaptar a uma nova configuração familiar, muito mais complexa e cheia desafios.

Trailer:

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