Crítica: Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile (2019, Joe Berlinger)

A sociedade ocidental moderna sempre foi fascinada por serial killers. Hoje, com o recurso da tecnologia, talvez mais do que nunca, pode-se ter ao alcance das mãos uma extensiva informação acerca dos mais notórios assassinos e das mais perversas mentes da História. Desde a Idade Média Gilles de Rais, Condessa Báthory, passando pela modernidade, Jack o Estripador e H.H. Holmes, até os mais populares transgressores do American Dream, John Wayne Gacy, Charles Manson, Aileen Wuornos, Richard Ramirez, Jeffrey Dahmer e Ted Bundy – a lista somente tende a crescer -, as pessoas são capturadas pelo elemento de mistério envolto nos crimes e nas vidas desses assassinos em série, em suma, atraídas por aquilo que não conseguem entender.

Freud já dizia, no início do século XX que “a neurose é o negativo da perversão”, ele afirma que “enquanto o neurótico vive sua sexualidade na fantasia, o perverso a vive através da atividade, da ação.” É importante fazer uma distinção da origem da palavra perversão: na Psicanálise, a estrutura psicopatológica que situa um sujeito no campo da perversão se difere, essencialmente, daquilo que as pessoas costumam associar, normalmente, como algo “perverso”, termo que tem forte influência da Psiquiatria clássica de Philippe Pinel e Richard von Kraft-Ebbing, referindo-se a práticas maldosas, crueis ou referentes a desvios sexuais, portanto, o conceito está inteiramente relacionado à moral vigente. Já para Freud e seus seguidores, a perversão refere-se ao funcionamento mental no qual há uma recusa a realizar um laço social: o perverso não aceita se submeter primeiramente à lei paterna, portanto nem às leis sociais.

Zac Efron e Lily Collins em cena do filme “Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile”
Por proximidade, uma palavra recorrente associado à perversão é “psicopatia”, um termo surgido primeiramente com o psiquiatra Hervey Cleckey, em seu livro “A Máscara da Sanidade”, publicado em 1941. É um termo extremamente banalizado e fetichizado hoje, por meio da atenção dada pela mídia, sendo objeto de diversos estudos, tanto científicos quanto sensacionalistas. Não é de hoje a fascinação pela mente dos ditos psicopatas, Assassinos por Natureza (1994) é um dos filmes que trata sobre essa questão em forma de paródia e crítica social, problematizando o quanto o nosso juízo é relativo quando se trata de figuras com quem simpatizamos, de alguma forma. Em resumo, é um termo extremamente volátil e difícil de ser descrito em poucas palavras, por entrar em territórios diferentes, tanto Psiquiatria, como Psicologia e Psicanálise e na área Jurídica.

Pôster do documentário da Netflix produzido por Joe Berlinger em 2019: “Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy”)

A popularização da Netflix atualmente traz um grande catálogo com um número crescente de documentários e biografias de assassinos em série e crimes macabros, entre eles o documentário deste ano Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy, em (irônica) comemoração aos 30 anos da execução de Bundy na cadeira elétrica em 1989. O documentário faz uma seleção a partir de mais de 100 horas de gravações de Bundy enquanto estava no corredor da morte, além de fazer uma reconstrução detalhada de sua vida e de seus crimes e trazer entrevistas inéditas com familiares e conhecidos seus à época, uma obra com recortes jornalísticos muito instigantes. Mais recentemente, o diretor, Joe Berlinger se debruçou sobre um projeto cinematográfico incomum, por meio de seu imaginário, conseguimos ter acesso à sua visão de como teria sido o personagem de Ted Bundy, aos seus olhos, tão charmoso e carismático quanto Zac Efron, diga-se de passagem.

Certamente, o que o filme de Joe Berlinger provoca é uma sensação de ambiguidade e desconforto extremos, para dizer o mínimo. Assistir à performance brilhante de Zac Efron como um dos assassinos em série mais notórios da História dos Estados Unidos somente ajuda a intensificar o quão real e grave foram seus crimes, e o quanto continuamos a dar destaque e fama ilustre a seres humanos tão crueis e perversos, como diz o título da própria obra – uma tradução para o português perderia o sentido original. Aliás, o título do filme vem diretamente de uma frase proferida pelo juiz que decretou a pena de morte à Bundy, o juiz Edward Cowart se referiu aos crimes praticados por ele como “extremamente perversos, chocantemente maldosos e vis, o produto de um plano de infligir um alto grau de dor, com total indiferença à vida humana”.

É importante que se problematize este tipo de fascinação por assassinos em série, ao qual nossa sociedade tem seguido quase que religiosamente, creio que, se por um lado, todos nós somos, em certo nível, fascinados por histórias de horror e crimes macabros, por mentes patológicas e desequilibradas – justamente por serem algo tão distante de nós – será que realmente são distantes? Uma das questões mais absurdas na história de Ted Bundy é o quanto ele foi dispensado de inúmeras investigações e tribunais justamente por não “parecer” o tipo homicida, psicopata. Talvez por isso seu caso tenha sido um dos mais chocantes do século passado, tendo atraído intensiva atenção da mídia, o julgamento tendo sido televisionado e transformado em circo – afinal, quem diria que um homem branco, de classe média com um QI perfeitamente aceitável teria cometido todos aqueles crimes atrozes?

A partir disso, é possível pensar que houve uma mudança no senso comum em relação a quem devemos temer, pois, o inimigo pode estar em qualquer lugar, qualquer um pode esconder uma verdade obscura, viver uma vida dupla de crime e horror. Por outro lado, essa fascinação permanente por assassinos em série – que na sua maioria são homens -, que não posso nomear de outra coisa a não ser perversa, também traz à tona a nossa tolerância à violência e à misoginia.

 
Um dos pontos centrais da história criminal de Ted Bundy (e de praticamente a maior parte dos assassinos em série mais populares) é que ele raptava, estuprava e assassinava mulheres de forma brutal, não necessariamente nesta ordem – talvez com a exceção de John Wayne Gacy, Jeffrey Dahmer e Aileen Wuornos que vitimavam meninos e homens. Ao assistirmos o documentário da Netflix produzido por Joe Berlinger, pode-se perceber o quanto Bundy possui um perfil específico de vítimas: mulheres jovens, universitárias em seus 20 e poucos anos, inteligentes e no ápice de sua juventude e beleza, não é à toa que Bundy deseja com todas as suas forças aniquilar e destruir algo extremamente vivo e poderoso, algo que ele não conseguiria possuir nem dominar de nenhuma outra forma.

Entretanto, acredito que o filme de Joe Berlinger tenha uma qualidade redentora, pois, não se trata apenas de mais uma vez sensacionalizar e transformar em mito a figura de Ted Bundy – apesar de que isso está presente, sem isso não haveria propósito de filme -, homem carismático e inteligente, eterno estudante de direito, com uma eloquência somente comparáveis a sua tremenda força física e inventividade para escapar de prisões, trata-se também de girar o discurso e contar esta história a partir da narrativa de uma mulher, a ex-namorada de Bundy, Elizabeth Kendall, interpretada no filme por Lily Collins. Contar a história de Ted Bundy, hoje, mais do que nunca, é contar a história de todas as mulheres que foram vitimadas por ele, em sombrio reconhecimento de que isso não venha a se repetir.

Título Original: Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile

Direção: Joe Berlinger

Duração: 108 minutos

Elenco: Zac Efron, Lily Collins, Kaya Scodelario, Jeffrey Donovan, Haley Joel Osment, James Hetfield

Sinopse: Cinebiografia de Ted Bundy (Zac Efron), serial killer que matou, pelo
menos, 30 mulheres em sete estados norte-americanos durante a década de
1970. O foco principal será a relação disfuncional entre o assassino e
sua namorada, Liz Kloepfer (Lily Collins), que durou sete anos.

Trailer

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