Crítica: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968, de Stanley Kubrick)


Lançado 50 anos atrás, 2001: Uma Odisseia no Espaço é considerado por muitos um dos melhores filmes já feitos. Sua direção, composição, trilha sonora e jogo de câmera são tão marcantes e importantes para a história do cinema quanto a capacidade deste de não ser um filme fácil de ser digerido. Tamanha a magnitude de 2001 que se torna quase um desafio escrever sobre o filme, ou mesmo tentar explicar algumas cenas como a famigerada “Jupiter e além do infinito“. Na ousadia de fazer uma crítica que seja à altura do que o filme exige, para não cair na mesmice e “reinventar a roda” dizendo apenas ser uma obra prima, decidi fazer desta crítica também o porquê de ser uma obra prima e uma fonte de referências, colocando alguns pontos externos e internos que vão não somente aumentar o amor pelo filme como até, talvez, dar sentido aos mistérios do enredo.


Começando pelo ponto de ser uma adaptação, é incrível ver a combinação entre Kubrick e Arthur C. Clarke, co-roteirista e autor do livro. Ambos participaram e ajudaram um ao outro na criação do roteiro e do romance. Certa vez, Clarke disse que se alguém entendeu por completo a história de 2001, a missão dele e de Kubrick havia falhado. Embora seja clara a diferença entre um filme e um livro, a história dos dois formatos é tratada do melhor jeito possível, com diferenças que fazem de ambas tão boas quanto e, de certa forma, complementares. O próprio Clarke comenta em um dos prefácios do livro homônimo que essas mesmas diferenças exigem das obras perspectivas diferentes, que no final revelam partes umas das outras. Ainda, tal relação nos dá algumas pistas de como captar algum sentido, assim como certas referências cruciais, como a recomendação de Kubrick a Clarke de ler a obra “O Herói de Mil Faces“, do antropólogo (e mitólogo) Joseph Campbell.


De forma resumida, a obra de Joseph Campbell contém o argumento de que toda história/mito já contada em toda história da humanidade é, de certa forma, a mesma história. Estipulando determinados passos que todas as histórias seguem, Campbell cria a “jornada do herói”, o caminho “circular” que toda jornada perpassa, que leva o herói aos desafios e espólios de seu árduo trabalho, indo do mundo dos mortos ao retorno ao lar, o lugar estático mas diferente, ao final da jornada. Tal tese repercutiu de tamanha forma em Hollywood que pelos tempos atuais até foram feitas versões resumidas da jornada, vendidas em qualquer livraria na seção de aspirantes a roteirista, acarretando em um mar de clichês (sim, eu culpo o “Manuscrito de Vogler” por má apropriação do tema). 2001 claramente não é um deles.

E aqui entramos no que pode ser considerado o tema do filme, a evolução humana, no sentido mais transcendental do termo. Kubrick queria uma obra que tratasse de proporções míticas, e nada mais mítico do que a jornada que toda a humanidade passa para alcançar outros patamares de existência. No começo do filme, no arco dos primatas lutando pela fonte de água, essa ideia é colocada de forma precisa e excepcional. O primórdio de toda raça humana precisou captar formas de sobrevivência que definiram vencedores e perdedores dentro da própria espécie, mas essas formas foram impulsionadas por seres de outro tempo/espaço. Não temos pistas de quem ou o quê são esses seres; são apresentados ao público apenas pelo famoso objeto preto em forma de paralelepípedo que aparece para os primatas, o monólito.


Esse arco em específico deixa claro como a fotografia do Kubrick, de certa forma centralizada, mesclando estática e movimento, deixa certo desconforto. São longos takes de primatas ao redor de uma gruta, admirando o objeto preto que surgira. O trabalho dos atores que interpretam os primatas é tão marcante que até hoje questionam se, na realidade, não seriam primatas reais compondo a cena.

É concreto dizer que “dawn of men” é uma parte crucial da história. Sua explicação e origem são tão misteriosas quanto o propósito do monólito, mas é perceptível que os primatas apenas aprendem a se defender e caçar outros animais quando, em uma noite qualquer, o objeto aparece e é tocado. Também é o primeiro momento em que a icônica música Also Sprach Zarathustra é tocada no filme, exatamente quando os primatas aprendem a manusear objetos como armas, possibilitando a dominação do território e a subjugar outras espécies, continuando através de takes de um primata esmagando um esqueleto e de animais sendo abatidos da mesma forma. Cenas que conversam entre si e dizem que, a partir daquele momento, os primatas não mais seriam subjugados em seu próprio habitat.


O arco termina com o considerado melhor corte de cena da história. Na continuidade dos ossos sendo partidos e quebrados pela nova habilidade adquirida pelos antepassados da humanidade, um pedaço de osso é jogado ao céus. Em meio ao giro aéreo deste, somos inseridos em um ambiente completamente diferente em que outro objeto de formato parecido flutua: um satélite no espaço sideral. A sensação dessa mudança é brusca, ao mesmo tempo que quase uma poesia dada a sincronia perfeita entre as posição do osso e a posição do satélite.



Em meio às naves e estações espaciais flutuando em pleno espaço como em um ballet, somos apresentados ao contexto do filme. Em uma Terra já avançada em tecnologia espacial, uma escavação na lua descobre um misterioso objeto preto em formato de paralelepípedo. Dr. Heywood Floyd é mandado para a base de exploração para verificar objeto. A icônica cena da caneta flutuando enquanto Floyd dorme, em um universo corriqueiro daqueles acostumados com viagens espaciais, mostra exatamente essa rotina do espaço, que não mais é uma uma impossibilidade, mas sim um engatinhar rumo ao sistema solar, rumo ao infinito escuro. E tudo isso por conta de uma caneta colada em um vidro transparente que é retirada e colocada no bolso do passageiro. Uma espécie que se adapta aos diversos e difíceis ambientes.



Aqui fica perceptível a genialidade do diretor, visto a verossimilhança com os futuros resultados da então corrida espacial e do que conhecemos hoje por efeitos técnicos e especiais. O incrível disso tudo é
relembrar que o filme fora lançado em 1968, ou seja, antes do próprio Neil Armstrong dar seus passinhos pela lua, antes de existirem efeitos
suficientemente bons para sequer criar alguma cena
computadorizada.
Kubrick fora tão perfeccionista ao tentar recriar um pouso “real” na lua, em uma época que não tínhamos nem a certeza de que não pousaríamos em uma nuvem de poeira cósmica, que até hoje existem lendas sobre a participação do diretor na teórica falsidade da missão Apollo 11. Mas, como é ironizada tal situação, Kubrick fora contratado para dirigir a farsa de Apollo 11, mas era tão perfeccionista que exigiu filmar no local original. Ainda, fora o primeiro filme da história a contratar um consultor, um pesquisador membro da equipe de produção, para opinar, justamente, na montagem de determinadas cenas, para que estas ficassem o mais verossímil o possível, sem erros técnicos e sem nenhuma lei da física quebrada.


Justamente nessa finalização de arco que começamos a entender que não teremos respostas fáceis. A explicação dos vários acontecimentos que ocorreram na lua ficam abertas, deixando toda questão de o que aconteceu com a equipe de exploração, após tocarem o monólito, para a interpretação de quem assiste. Ou seja, é normal a frustração de terminar o filme sem entender absolutamente nada, e forçar a conexão entre todas as cenas para conseguir alguma coisa. Essa mudança brusca na narrativa não é um buraco, mas sim estritamente proposital. Teremos de evoluir nossas percepções para captar alguma coisa. Daí que vem a dificuldade de digestão do filme, e daí vem o caráter experimental da obra. É possível assistir o filme partindo de qualquer parte e parar em qualquer parte que ainda teremos algumas sensações bem parecidas como quem assistiu o filme todo.


A “Missão à Júpiter“, 18 meses depois dos acontecimentos na lua, nos apresenta os astronautas Dave e Frank, acompanhados do supercomputador HAL 9000 e de outros três tripulantes humanos em estado de hibernação. O objetivo da missão é de levar uma equipe de exploração ao maior planeta do sistema solar, retomando a ideia de que o ser humano continua seu progresso pela galáxia. Tudo parece relativamente normal até problemas serem identificados na nave e os próprios astronautas começarem a desconfiar das reais intenções de HAL.



É interessante perceber que de todos os seres humanos que aparecem no filme, a criatura mais empática, filosófica e instintiva é o supercomputador, ironia que motiva suas ações desenfreadas. Todos os seres humanos que aparecem depois do corte de cena do satélite expressam suas emoções de forma estranha, quase como se não tivessem alguma. Vemos isso pela reação do pai e da filha, como o astronauta Frank recebe os parabéns de seus pais. HAL, ao sentir-se em perigo pelos seus próprios colegas de tripulação, começa uma luta pela sobrevivência, transformando a nave em um campo de batalha ao qual ele é o ser dominante. Empurrando Frank para o espaço infinito, sufocando os tripulantes em hibernação, HAL encontra seu maior problema em Dave, e na aposta de que este preferiria salvar seus companheiros do que a si mesmo.


Contar com tal humanidade configura o erro do impecável computador, assim como sua morte. A cena de Dave desligando os processadores enquanto HAL implora por piedade não coloca muitas diferenças da cena do primata esmagando a cabeça de seu rival. O estado do astronauta não é vingativo, não existe emoção em suas ações, mas sim robótica e mecânica continuidade de sua sobrevivência, ignorando qualquer pedido de clemência do robô enquanto temos a impressão visceral de Dave estripando-o.

Não diferente dos momentos anteriores do filme, as técnicas utilizadas para a construção do arco foram muito à frente de seu tempo. A famosa cena de Frank fazendo exercícios na nave é de uma ilusão de ótica feita com jogo de câmera e um estúdio circular que deixa muitos com dúvida se o filme realmente fora feito nos anos 60. Também, a forte iluminação da nave que dá uma sensação de quase que laboratorial de como este ambiente funciona. Ainda, as cenas dos astronautas no espaço foram tão realistas que tanto Kubrick tanto Clarke receberam elogios e cartas de astronautas dizendo que fora o filme mais próximo da realidade, também contando a cena agonizante e quase estática de Frank verificando um problema na fuselagem externa da nave em que o único som é a respiração do astronauta.





E então, por fim, a famigerada “Júpiter e além do infinito“. Se existe um momento que divide todos aqueles que nesses cinquenta anos assistiram 2001 é este. O tênue limiar entre ódio e amor pelo diretor. Após os acontecimentos da nave, Dave, ao matar HAL e descobrir que há um motivo muito maior por trás da exploração ao planeta Júpiter, encontra-se sozinho em um pequeno pod de exploração flutuando pelo espaço.


Quando Dave chega aos limiares de Júpiter, encontra o monólito. O astronauta entra em uma viagem cósmica, passando por vórtices coloridos, dimensões alternativas e outros lugares do universo. Uma explosão de cores e abstrações que fazem Dave entrar em um processo de conhecimento muito além do que sua capacidade humana é consegue compreender. São vinte e três minutos de puro espetáculo imagético que alterna entre cenas feitas com efeitos de luzes, tintas pretas e tinta à óleo em água, e frames de agonia de Dave. Toda nossa interpretação do filme é jogada ao limite. Tudo isso ao som de uma trilha agonizante e tensa, não dando sentimentos neutros e pacíficos ao próprio processo de Dave.

 



Por fim, encontramos Dave em uma sala, repleta de obras de arte do período renascentista, ao qual ele vê várias versões de si, que vão envelhecendo até o momento de sua morte. Deitado em uma cama, à beira de seu fim, Dave reencontra o monólito. O ator disse que a sensação que queriam passar era a de que a sala seria um ambiente análogo ao que fazemos com jaulas em zoológicos, que pintamos e montamos cenários para deixar o animal mais confortável. O processo que Dave passa é, como o próprio cenário aponta, um renascimento. Na conquista do sistema solar, o ser humano terá de abandonar seus confortos, sua gruta com fonte de água. O filme se encerra ao som de Also Sprach Zarathustra com a imagem de um bebê dentro de uma estrela, deixando o destino do astronauta aberto à interpretação.



O que nos faz retornar ao possível ponto do filme. A própria evolução levou a humanidade ao ponto de autodestruição, de insensibilidade e sem empatia, mas avançada o suficiente para criar uma criatura tão humana e mais inteligente do que ela própria. Mas essa mesma diferença entre evolução tecnológica e evolução transcendental que torna o filme, além de muitas coisas, mítico. Todos aqueles que assistem tiram interpretações e sensações diferentes, e a própria busca pelos significados do filme torna-se um processo evolutivo. 2001 é um filme complexo, um marco da ficção científica e do cinema como um todo, um filme extremamente imagético e com inúmeras referências externas que o tornam uma experiência de vida, não somente filme. A jornada do herói que Dave enfrenta é a mesma que enfrentamos ao assistir o filme. Ao final deste não somos mais os mesmos.

Não sendo um filme necessariamente palatável, este justamente gera uma percepção nova de limites da sétima arte, que Kubrick comprovara de forma perfeita de que não há nenhum. 2001, em seu aniversário de meia idade, prova que está ainda muito atual. Tão atual que podemos encontrar referências ao filme em inúmeras obras, como filmes, livros, séries, especiais de televisão, como Simpsons, Alien, Blade Runner, Wall-e, Moon, South Park, Phineas e Ferb, A Fantástica Fábrica de Chocolate, Mad Men, Sunshine e inúmeras outras. A mais recente que ganhou grande relevância na cultura pop fora o filme Interestelar, de Christopher Nolan. Tanto o roteiro, temática, efeitos especiais e, principalmente, trilha sonora, são praticamente um altar de contemplação à 2001.

Não há como terminar sem reiterar que é, sem dúvida, um dos melhores filmes da história. Quiçá o melhor.

Título Original: 2001: A Space Odyssey

Direção: Stanley Kubrick

Elenco: Keir Duella, Gary Lockwood e William Sylvester

Sinopse: Do nascimento da humanidade até o futuro, um estranho objeto em formato de paralelepípedo acompanha toda a trajetória da evolução humana. Quando esse estranho objeto é encontrado em uma exploração na lua, uma equipe recebe a missão de investigá-lo. Simultaneamente, um grupo de astronautas viaja em direção ao planeta Júpiter, na companhia do supercomputador HAL 9000, até que a inteligência artificial começa a se comportar de forma estranha, colocando em risco a vida de toda equipe.

Trailer:
 
Bônus 1: Outras cenas do filme

Bônus 2:
Uma das grandes lendas que rodeiam o filme está na provável relação entre a música Echoes, da banda Pink Floyd, e as cenas de Júpiter e Além do Infinito. Boatos
dizem que Kubrick queria usar a música como trilha sonora para a
passagem de Dave pela viagem astral. Sendo verdade ou não, alguns fãs
sincronizaram as duas produções, dando um resultado particularmente
interessante:

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