Crítica: Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022, de Alejandro González Iñarritu)

Em 2016, o mexicano Alejandro González Iñarritu venceu seu segundo Oscar de melhor direção seguido – feito atingido apenas por John Ford, em 1940 e 1941, e Joseph L. Mankiewicz, em 1949 e 1950. No mesmo ano, Donald Trump venceu as eleições presidenciais dos Estados Unidos, em uma campanha marcada por declarações odiosas aos imigrantes, especialmente mexicanos, chegando a prometer a construção de um muro entre os EUA e o México.

O ódio dos estadunidenses – e não “americanos”, como o filme faz questão de ressaltar – pelos mexicanos, apesar de manifestado de outra forma, é uma das inúmeras similaridades que Bardo compartilha com as experiências de vida de Iñarritu, imigrante nos EUA. O diretor, aqui, realiza seu filme mais pessoal, que, apesar de ter pontos em comum com outras de suas obras – especialmente Birdman (2014) – trata mais de si mesmo do que de qualquer outra coisa.

No longa protagonizado por Michael Keaton em 2014, Iñarritu usa a metalinguagem de forma brilhante em relação aos atores com quem trabalha e à própria indústria. Já em seu novo filme, a metalinguagem se aplica, principalmente, à sua própria vida, de forma tão intensa que a discussão sobre o filme não pode deixar de passar por esse aspecto. Para ter certeza, basta reparar na semelhança física entre o diretor e o protagonista.

Isso não significa, no entanto, que seja um filme unicamente autobiográfico ou metalinguístico, ou que apenas funcione como tal. O longa contém reflexões sobre imigração no geral, e as personifica não apenas em Silverio, o protagonista, mas também em sua família e em como é tratado por seus compatriotas. O jornalista e documentarista faz questão de defender o México sempre que um estadunidense ataca, mas fala mal do país quando um conterrâneo é ufanista. Seu filho, Lorenzo, foi levado aos EUA quando ainda era criança, portanto, não carrega o patriotismo seletivo do pai, e nem a importância que ele dá às suas raízes – o adolescente, inclusive, fala mais inglês do que espanhol na mesa de café da manhã, o que leva o pai à fúria em uma das melhores cenas do filme.

O isolamento sentido por Silverio é latente desde a primeira cena em que ele chega no México, na qual o reflexo da cidade nos vidros de um carro é tão forte que ofusca quem está dentro do automóvel. Mais tarde, quando está voltando aos EUA, um agente da imigração, claramente descendente de mexicanos, diz que a família do documentarista não pode chamar os EUA de lar, por não ter um determinado tipo de visto. “As vezes, achamos que pertencemos a vários lugares, quando na verdade não pertencemos a nenhum”, reflete Silverio.

Outro paralelo com a vida de Iñarritu se dá no timing em que o protagonista recebe um prêmio importantíssimo na California: quando uma onda de extrema-direita dos Estados Unidos faz ataques constantes ao México. Isso leva alguns a dizerem que o prêmio é apenas uma forma de pedir desculpas da bolha artística e intelectual da California ao México como um todo. O cineasta trata dessa metalinguagem relacionando-a com a história de guerra entre os dois países – outra semelhança que carrega com seu protagonista, que recebe críticas por falar de sua vida através de figuras históricas em seus documentários. Para Iñarritu e Silverio, a criação artística é, também, uma forma de terapia. Eles usam da ficção (ou da docuficção) para tratar de questões importantes para seus seres interiores, sejam elas pessoais, sociais ou universais.

O diretor, inclusive, usa o longa para abordar críticas constantes a seus filmes; em uma festa dada em sua homenagem, Silverio é confrontado por um jornalista, que rotulou publicamente seu trabalho como pretensioso e calcado no plágio de pessoas mais talentosas que ele. Essa é uma crítica constante por parte dos detratores de Iñarritu, que julgam que ele tenta fazer filmes mais complexos do que é capaz de manejar, e o acusam de plagiar, por exemplo, Fellini em Birdman, e Tarkovsky em O Regresso.

O jornalista em questão é um ex-colega e desafeto de Silverio, e se sentiu abandonado quando ele decidiu desmanchar a parceria e alçar voos maiores sozinho. Não por coincidência, Iñarritu tem um caso parecido em sua carreira: após seu terceiro longa – Babel, de 2006 -, o diretor rompeu relações com Guillermo Arriaga, co-roteirista de seus três primeiros filmes. O roteirista deu declarações criticando Babel, e, posteriormente, falou mal de outros filmes de Iñarritu.

Em termos visuais, o filme é perfeitamente consistente com as outras obras da filmografia do diretor. Intercalando planos-sequências enormes, planos longos e uma montagem que pode confundir o público, mas reforça o estado mental dos personagens, o diretor cria um universo extremamente particular, que imerge o espectador desde o primeira cena.

Se o cineasta nunca fez questão de esconder suas referências – o que contribui muito para aqueles que o acusam de plágio -, não foi dessa vez que ele decidiu fazer diferente. Logo no início do filme, é introduzido um tom surrealista com pitadas de humor que remete diretamente a um dos pais do surrealismo cinematográfico, o mestre espanhol Luís Buñuel. A forma como o cineasta usa essa influência – apesar de grotesca e, alguns podem dizer, óbvia – é de uma beleza ímpar: ela serve para suavizar uma dor imensa que Silverio compartilha com sua família, ou para ilustrar como ele se sente ao “reencontrar” seu pai.

Além disso, há momentos em que esse tom surreal é utilizado para um efeito que acaba sendo cômico, mas serve para ressaltar aspectos internos do personagem – como quando ele não escuta o que alguém fala, ou quando se imerge em um mundo próprio ao dançar ao som de uma música totalmente diferente da que está sendo tocada.

O filme, no entanto, passa longe da perfeição: se alonga excessivamente, beirando as duas horas e quarenta minutos de duração, passa perigosamente perto de se perder completamente em seus vinte minutos finais, aposta em metáforas terrivelmente óbvias – como a do peixe fora d’água – e, em alguns momentos, a autoindulgência de Iñarritu ultrapassa o limite do aceitável, mesmo para seus admiradores, que já estão acostumados com isso em sua obra.

A natureza simultaneamente pessoal e ampla de Bardo se traduz até mesmo em seu título. Na tradição budista tibetana, a palavra significa um estado de existência intermediária entre a morte e o renascimento – uma espécie de limbo. Funciona como uma metáfora tanto para o estado existencial e artístico em que se encontra Silverio, quanto para a natureza quase liminal de pessoas que se desconectaram de sua terra natal e não se sentem confortáveis em sua nova morada.

Na Europa antiga, os bardos eram os responsáveis por contar histórias, mitos e lendas. De certa forma, esse papel foi transmitido para os jornalistas, cineastas e artistas. Portanto, se não bardos, o que são Silverio Gacho e Alejandro González Iñarritu?

Título Original: Bardo, Falsa Crónica de Unas Cuantas Verdades

Direção: Alejandro González Iñarritu

Duração: 159 minutos

Elenco: Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani, Ximena Lamadrid, Íker Sanchez Solano, Luz Jiménez, Luis Couturier, Francisco Rubio, Andrés Almeida, Clementina Guadarrama, Jay O. Sanders, Noé Hernandez

Sinopse: Após ser escolhido para receber um prêmio de prestígio internacional em Los Angeles, o documentarista Silverio Gacho volta para o México, país onde nasceu, e passa por uma jornada existencial com seu passado e presente.

Trailer:

E você, já assistiu ao novo trabalho de Iñarritu? O filme está em cartaz em cinemas selecionados ao redor do Brasil, e chega à Netflix no dia 16 de Dezembro.

Deixe uma resposta