Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída – 40 anos depois continua um soco no estômago

40 anos atrás um filme alemão marcava o cinema mundial, causando polêmica, quase sendo proibido e rendendo boa bilheteria, marcando as gerações dos anos 80 e 90, trazendo para a época o mais cru relato cinematográfico do que é ser usuário de drogas pesadas, dos ciclos de abstinência e recaídas, da overdose, do horror das consequências das drogas como prostituição e morte. Serviu de base para outros filmes posteriores, que abordaram essa temática. Em comemoração do seu aniversário de 40 anos, a obra vem sendo relançada em cinemas selecionados e a ótima distribuidora A2 Filmes ficou a cargo de pensar fora do óbvio e trazer ao Brasil esse clássico atemporal.

Baseado no livro Wir Kinder vom Bahnhof Zoo, que na tradução seria algo como Nós, as Crianças do Zoológico de Bahnhof – sendo Bahnhof a estação de metrô onde os drogados ficavam -, traz a real história de Christiane Felscherinow e seus relatos deste sombrio mundo. Extremamente imersivo, o longa consegue nos transportar por uma Berlim fria e decadente, com muitos drogados, prostitutas e mendigos nas calçadas, metrôs, nas festas e nas esquinas à noite. O visual, os figurinos, o fervilhão de pessoas por toda parte se topando, mas sem se enxergar de fato, a marcante trilha sonora assinada pelo lendário David Bowie, que também aparece como ele mesmo em um incrível show, tudo faz-nos estar ali, nas ruas, nas plateias, nos banheiros, espiando os acontecimentos, quase cúmplices. É realmente uma imersão impecável.

Uli Edel dirige a obra com uma firmeza incrível, que talvez nem tenha conseguido mais replicar em sua carreira. As cenas nuas e cruas do uso de drogas pesadas são sempre acompanhadas de um clima soturno, de uma atmosfera ruim. O diretor não poupa elementos gráficos como sangue, picadas, vômitos, troca-troca de seringas por toda parte, é realmente explícito e opressivo visualmente, mas nunca perdendo a mão do requinte cinematográfico. É um filme alerta, o alerta que Christiane dá em seu livro, sobre as perdas que as drogas acarretam na vida. Também nota-se de forma sutil a questão de fazermos certas coisas destrutivas por amor.

Mais acima falei das muitas pessoas por toda parte, mas ninguém se enxergando. O não enxergar esses indivíduos, especialmente jovens, perpetua esse comportamento autodestrutivo, que isolados, se jogam naquilo que momentaneamente suprem suas lacunas. Note como a mãe de Christiane, sempre ausente por ser mãe solteira, precisando trabalhar, demora muito a ver qual a real situação da jovem de apenas 13 anos. A ausência da mãe (ainda mais do pai, cujo roteiro explicita que não é boa coisa), a ausência da amiga, que está em nova vibe, a descoberta do amor (um rapaz usuário), todas as inseguranças típicas da idade, propiciam esse abismo, essa enorme lacuna cuja experimentação das drogas e até do sexo trazem. Não há aqui muitos julgamentos, apenas relatos de como ocorrem, de quão duro é tentar ficar limpo, com o corpo fervendo e doendo da abstinência, de como a determinação de parar fica para amanhã, e depois amanhã, sempre adiando. Fica clara a consciência dos usuários de que é algo nocivo, mas foge-lhes a força e o apoio para parar de fato.

Drogados e jogados à margem da sociedade, tornam-se invisíveis, cambaleando chapados nas esquinas, banheiros públicos e no metrô. São praticamente zumbis, meio mortos-vivos. Daí cabe perfeitamente essa comparação, não atoa Christiane e seus amigos assistem A Noite dos Mortos-Vivos no cinema, sim o clássico do George Romero de 1968. Quando drogados, são praticamente os zumbis que tanto os apavoraram na tela de cinema. E que agora, nós como telespectadores, nos apavoramos com eles assistindo a esse filme. As cenas são de fato aterrorizantes tamanha realidade.

Talvez em pequenos detalhes o filme pareça datado, ao comentar sobre a comunidade LGBTQ aqui, a questão da tatuagem e pintar o cabelo ali, coisas vistas como rebeldes e undergronds, mas que hoje sabe-se que não tem necessariamente relação com o uso de drogas. No mais, se fosse elaborado hoje, o filme ainda falaria mais profundamente da questão da pedofilia, e da AIDS devido o compartilhamento de seringas, mas na época a doença ainda não tinha tido seu boom, por assim dizer. Fora estas pequenas questões, é impressionante como no geral o filme envelheceu muito bem, à prova de balas e ainda muito atual.

Grandiosa atuação da Natja Brunckhorst, que entrega uma protagonista frágil e forte nas mesmas intensidades, com uma entrega dramática espetacular, e por vezes de uma sutileza e doçura tristes, afinal é apenas uma menina. Um soco no estômago, ainda muito palpável. Quem passa por locais públicos e de grande circulação de pessoas em grandes cidades, presencia cenas similares ao filme. Ou talvez nem os enxerguemos mais, estão lá, zumbis, sem nos importarmos.

Título Original: Christiane F. – Wir Kinder vom Bahnhof Zoo

Direção: Uli Edel

Duração: 138 minutos

Elenco: David Bowie, Natja Brunckhorst, Thomas Haustein, Eberhard Auriga, Peggy Bussieck, Lothar Chamski, Rainer Woelk, Uwe Diderich

Sinopse: Christiane é uma garota de 13 anos que vive em Berlim, Alemanha, em meados dos anos 1970. Ela começa a ir a um clube chamado “Sound” com sua amiga mais velha Kessi. Ela logo faz novos amigos, a maioria dos quais são viciados em drogas, e se apaixona por um garoto chamado Detlev, que também é viciado em drogas e se prostitui. Christiane começa a tomar pílulas para se encaixar e depois começa a tomar heroína. Sua vida começa a desmoronar quando ela se torna uma viciada em heroína e vê o mesmo acontecendo com seus amigos.

Trailer:

Já assistiu a esse clássico atemporal? Que tal rever ou ver pela primeira vez, se estiver passando na sua cidade?

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