Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022, de The Daniels) – Sobre todas as possibilidades de existir

2022 está sendo o ano dos multiversos no cinema e no streaming, isso é inegável. Falando da Marvel, após várias pistas e construções, o multiverso finalmente foi aberto nas produções do estúdio no último filme do Homem-Aranha, no final de 2021. Com essa porta aberta, era muito aguardada a segunda produção do Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Embora essa aventura seja boa e consiga trazer toques de terror tão queridos pelo cineasta Sam Raimi, há pouco multiverso, poucas linhas do tempo paralelas e não tão malucas assim, decepcionando quem esperava muito mais, embora nunca ruim.

Dito isso, o live-action de Tico e Teco: Defensores da Lei, da Disney+, conseguiu trazer um multiverso mais insano, hilário e inesperado, sendo uma inteligente e surpreendente produção. Outros filmes e séries estão abordando a temática de formas diretas e indiretas; mais virão. Mas não tem jeito, dificilmente algo vai superar a grande experiência que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo proporciona.

Na trama, Michelle Yeoh vive uma mulher cansada do cotidiano, do marido, da filha, de um pai exigente e da falida lavanderia, que agora está dando problemas fiscais com uma agente da receita federal. No meio desse turbilhão, ela se vê como a escolhida de uma luta entre universos, onde precisa acessar habilidades de outras versões suas de outras realidades, para lutar e impedir uma ameaça que pode destruir tudo em todos universos. Não se deixe enganar, embora essa trama pareça clichê, acredite, o longa traz um roteiro absurdamente original. Talvez um dos filmes mais originais em muito tempo.

A dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, os The Daniels como se autointitulam, que já haviam mostrado originalidade com o inusitado Um Cadáver para Sobreviver, fazem uma incrível construção e desconstrução de conceitos e clichês do que seria um multiverso. Uma produção do principal estúdio independente americano, A24, dono de hits baratos em orçamento, mas grandes em inteligência e prestígio (A Bruxa, Hereditário, O Farol, A Ghost Story, Moonlight, Ex_Machina – só para citar alguns), novamente a equipe do estúdio e os diretores fazem “luxo do lixo”. Digo, não que algo seja um lixo nesses filmes, mas falo de ter um orçamento apertado, poucos recursos visuais e muitos conceitos que poderiam facilmente pender para o grotesco, e no fim entregarem um resultado classe A, ao mesmo tempo que descompromissado.

Nunca tentando ser maior do que realmente é em escala, longe de batalhas estratosféricas nível Marvel, o longa foca no microcosmo da protagonista, sua existência, à de sua família, suas necessidades e anseios. Mas claro, tudo isso levado para outros mundos, outras versões de si mesmos. Assim temos um macrocosmo construído em cima do microcosmo, da realidade da nossa heroína.

O visual, desde os efeitos em computação, passando pela direção de arte, cabelo, maquiagem e principalmente os belíssimos e originais figurinos, tudo é feito com um primor técnico invejável. Assim como os aspectos sonoros, todos excelentes. A direção dos Daniels é espetacular, ágil e cheia de referências visuais aos mais variados gêneros cinematográficos. Tematicamente e visualmente, acaba sendo uma obra muito rica, muito dinâmica, muito cheia de simbolismos e referências o tempo todo. Mas diferente da maioria das obras que colocam as referências como nostalgia ou interligando outras obras, aqui essas referências são sutis e unicamente ligadas à própria existência da mitologia do filme em si. E funciona tão bem …

O elenco de apoio é ótimo, principalmente a veterana Jamie Lee Curtis (franquia Halloween) e o retorno de Ke Huy Quan (lembra do garotinho de Indiana Jones e o Templo da Perdição?). Mas o filme é dela. A sempre ótima Michelle Yeoh (O Tigre e o Dragão) entrega a performance de sua vida até então, repleta de nuances conforme as mais de duas horas se desenrolam. Numa espécie de autodescoberta, quanto mais sua personagem conhece outras versões de si mesma, muitas vezes bem bizarras, belamente o roteiro faz ela conhecer mais sobre si própria. Nessa louca viagem de descoberta e aceitação sobre uma pessoa, o filme adentra sem medo no campo da filosofia e dialoga sobre a nossa pequenina existência. Porquê estamos aqui, agora? E se estivéssemos em outro lugar, outra carreira, outro relacionamento, a partir de outras decisões e com outros resultados? E se existissem milhões de possibilidades para nossa vida, qual escolheríamos? Não seria enlouquecedor saber disso? E se todas possibilidades, a princípio ramificadas, pudessem coexistir ao mesmo tempo?

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é sobre todas as possibilidades de existir. Isso se aplica à protagonista e suas versões e escolhas. Mas também se aplica ao filme em si, que consegue mesclar os gêneros cinematográficos, trazendo ação, comédia, drama, romance, fantasia, suspense, ficção científica, realismo e existencialismo. O roteiro é brilhante, emocionando, chocando, provocando, com um humor escrachado, agressivo e bizarro, mas com carga dramática espetacular. O filme é tudo, para todos os gostos, de todas as formas. Isso acaba trazendo não apenas uma montanha-russa de sentimentos e reflexões para nós, que assistimos encantados e surpreendidos à obra, mas também comunica-se diretamente com os cinéfilos, já que existem essas experimentações cinematográficas e de gêneros. É o tipo de filme que faz do cinema algo único e objeto de afeto para quem ama a sétima arte. É para isso que os filmes existem!

Faz jus ao nome. É tudo, é para todos e ao mesmo tempo. Possui fortes chances no Oscar 2023 e se não tiver, é aquilo, o Oscar muitas vezes ignora filmes visionários e quem perde é ele. Melhor filme de 2022, melhor utilização no audiovisual de um multiverso, melhor obra da era pandêmica e o primeiro filme que me tira um fator “ual” desde o final de 2019 quando assisti Parasita e Coringa. Os grandes estúdios tem muito o que aprender com os pequenos.

Obra-prima!

Título Original: Everything Everywhere All at Once

Direção: Daniel Kwan e Daniel Scheinert (The Daniels)

Duração: 140 minutos

Elenco: Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Jamie Lee Curtis, Stephanie Hsu.

Sinopse: Michelle Yeoh interpreta Evelyn Wang, uma cansada mulher chinesa-americana que luta para se manter. As coisas ficam estranhas quando ela descobre que é a chave para salvar o multiverso, e pode acessar o conhecimento e os talentos de todos os seus vários “eus” através dos infinitos universos.

Trailer:

Já assistiu esse filmão? Não? É um dos melhores dos últimos anos! Está esperando o quê?

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