Ataque dos Cães (2021, de Jane Campion)

Abaixo da superfície há muito mais do que se possa imaginar inicialmente, essa é uma das principais mensagens do novo filme da diretora neozelandesa Jane Campion, tecnicamente deslumbrante e artisticamente impactante, Ataque dos Cães, com todo o merecimento vem forte na temporada de premiações.

A história se passa na década de 1920 e é adaptada a partir de um livro semibiográfico chamado The Power of the Dog, de Tom Savage, publicado em 1967 e infelizmente ainda inédito no Brasil, o título da obra faz referência a uma passagem bíblica, mais especificamente uma passagem da bíblia inglesa do Rei James, um versículo do Salmo 22 que trata das tentações da carne e da alma. O longa retrata a vida de dois irmãos, Phil e George Burbank, ricos fazendeiros que tem suas rotinas alteradas quando, para a fúria de Phil, George se casa sem prévio aviso com Rose, uma bela viúva local, mãe de Pete, um rapaz de aspecto frágil e personalidade peculiar para a época e o ambiente em que vivem.

A trama então se desenrola através de um incessante jogo de insinuações que não diz quase nada diretamente, pois não é preciso já que está tudo ali para o expectador ver, às vezes escancarado, em outras nem tanto, em um filme que fala muito através de acenos, olhares e silêncios, numa tensão crescente causada pela pressão psicológica que o quarteto principal constrói uns sobre os outros.

Da primeira à última cena é necessário reparar nas sutilezas dos enquadramentos e gestos, pois Ataque dos Cães é antes de tudo uma obra que demanda atenção de seu expectador, seja um sorriso malicioso na janela ou um acariciar lascivo na flor de papel que adorna a mesa do jantar, tudo diz algo de importante a respeito do que está abaixo da superfície.

No jogo de provocações que se desenrola entre os personagens, cada um vai demonstrando sua faceta única, mas nem sempre suas intenções. Phil é sujo, tanto física quanto moralmente, avesso a banhos e qualquer coisa que julgue inútil, tal qual calçar luvas enquanto castra touros ou tratar com respeito quem julga inferior, como índios ou Pete, o sensível filho de sua nova cunhada. Por sua vez George é seu total oposto, sempre limpo, correto e educado. Se o irmão enxerga más intenções em cada curva, George é ingênuo até demais e tenta de alguma forma fazer da vida de sua nova família o melhor possível.

Rose, que acredita que o casamento pode ser uma nova oportunidade para ser feliz, logo percebe que caiu em uma jaula em forma de mansão e uma gigantesca fazenda a qual tem que dividir com seu torturador, o sádico Phil. Em comum todos tem uma única coisa, o medo de ver suas próprias represas emocionais se romperem, revelando verdades que eles se esforçam em ignorar.

É, no entanto, em torno do jovem Pete que tudo gira, discreto, impenetrável diante das muitas provocações, as pessoas ao redor enxergam nele traços afeminados, seu autocontrole perante as situações que se apresentam perturba Phil como uma farpa no dedo que não consegue tirar.

Tudo isso porém, está na superfície, abaixo dela existe muito mais, o bruto vaqueiro Phil é na verdade formado em Yale, o frio e distante Pete ama os pais acima de tudo, o calado George sente-se desconfortável naquele ambiente no qual cresceu, mas que ainda lhe causa estranheza e há muito mais em Rose por baixo do verniz da beleza. É dessa forma que pouco a pouco, um latido por vez, as tensões vão crescendo, a enorme mansão e as gigantescas e vastas paisagens são o perfeito contraste com o estado de espírito dos personagens, todos sentem-se sufocados, uma sensação de afogamento no lago de dor, mágoa e autoindulgência que acreditam que precisam suportar para seguir vivendo.

Em meio às insinuações que vão surgindo e se acumulando, por exemplo, existem amor de ambas as partes no casamento entre a bela viúva e o gentil fazendeiro rico, ou o irmão bruto tem razão nas suas ressalvas? Mas principalmente no amontoado de mentiras que os personagens contam para si mesmos, é realmente o convidado ilustre que se incomoda com a presença de Phil, ou respeito e admiração desse por um antigo companheiro de rancho é apenas o carinho de um aluno para com seu mestre? No medo de admitir para si mesmos os seus sentimentos e desejos muito represados, os personagens sentem-se cada vez mais aprisionados e é na certeza de que as comportas dessa represa de emoções irão se romper a qualquer instante que a trama se desenrola até um final arrebatador, em um dos grandes textos do cinema nos últimos anos.

Os quatro intérpretes estão em estado de graça, na melhor atuação da carreira de cada um e eles vem fortes na disputa de prêmios nessa temporada, Benedict Cumberbatch e Kodi Smit Mcphee já vem acumulando vitórias e chegam fortes pro Oscar, Plemons mesmo à altura dos companheiros deve ficar pelo caminho, mas Kirsten Dunst é decididamente uma aposta certa entre as indicadas coadjuvantes. A obra também tem grandes chances na categoria principal e em fotografia, edição e trilha, Jane Campion se destaca na direção com uma mão segura e apurada, mas acima de tudo entrega no roteiro adaptado um texto que é um jogo de provocações e que oferece ao expectador a chance de tirar suas próprias conclusões. Ou seja, é uma obra que possibilita múltiplas interpretações e seja qual for a sua, certamente será instigante.

Título Original: The Power of the Dog

Direção: Jane Campion

Duração: 128 minutos

Elenco: Benedict Cumberbatch,Kirsten Dunst,Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee.

Sinopse: Um fazendeiro durão trava uma guerra de ameaças contra a nova esposa do irmão e seu filho adolescente ― até que antigos segredos vêm à tona.

Trailer:

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