Woke e a Descoberta da Consciência Racial


“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades.”

— Neusa Santos de Souza

Woke é uma expressão da língua inglesa que diz respeito a um momento de percepção e conhecimento, quando indivíduos finalmente “acordam” para a situação de injustiças sociais e discriminação contra minorias. É um termo político bastante popular e comumente utilizado entre os movimentos sociais, em especial os movimentos antirracistas, e passou a ser muito disseminado nos últimos anos com o crescimento das redes sociais e dos movimentos políticos online. 

A nova comédia do Hulu, criada por Keith Knight e Marshall Todd, faz uso do termo quase ironicamente para construir um provocador retrato do racismo nos Estados Unidos contemporâneo, utilizando as próprias experiências de Knight com atitudes discriminatórias e como essas situações o atingiram profundamente. A série reflete não apenas sobre o racismo em si, mas também sobre como a luta antirracista, às vezes, acaba sendo sendo banalizada.

Woke acompanha Keef Knight, um cartunista prestes a conquistar a tão sonhada ascensão no mundo da arte. Ele sempre se orgulhou de conseguir manter suas charges em um tom leve e apenas cômico, sem precisar discutir temáticas raciais. Pois ele não enxergava necessidade em “transformar tudo em um tema político”. Para Keef, o simples fato de ele ser um homem negro não significa que ele precisa se posicionar e fazer críticas sociais em suas obras. 

Mas tudo isso muda quando passa por uma experiência traumática: Keef é vítima de perfilamento racial (quando uma pessoa racializada é considerada suspeita simplesmente por não ser branca), e acaba sofrendo violência policial quando os guardas “confundem” seu grampeador com uma arma. A partir disso, Keef é obrigado a lidar com estresse pós-traumático e repensar sua vivência como homem negro tendo em vista sua nova consciência de raça.

A série do Hulu se utiliza de elementos não só cômicos mas também quase fantásticos para fazer observações – às vezes perspicazes, às vezes nem tanto – sobre questões raciais nos EUA. Após ser vítima da brutalidade policial, Keef passa a experienciar situações um tanto inusitadas: ele começa a ser abordado por seres inanimados. O cartunista começa a ver determinados objetos, como sua caneta de desenho, transformados em seres antropomórficos “cartunizados” que o instruem sobre a discriminação racial na sociedade. Esses personagens funcionam como uma manifestação da recém descoberta conscientização de Keef e o estimulam a questionar experiências que até então ele não teria problematizado. 


Agora que Keef está “acordado”, ele pode finalmente perceber todas as problemáticas racistas que antes eram quase invisíveis para ele. Claro que o cartunista já conhecia bem o que é racismo, mas até então o mesmo só havia vivenciado violências “menores” que ele foi acostumado a normalizar. Mas depois de viver de perto a violência racista da polícia, ele passa a observar mais atentamente os espaços que frequenta e notar como o tratamento que recebe por ser um homem negro é diferenciado. 


Um exemplo é a festa que Keef é convidado onde ele é a única pessoa negra e, por isso, acaba sendo usado de token (um indivíduo de um grupo minoritário que é usado para representar toda sua comunidade) pelos convidados brancos que querem parecer progressistas. Eles o questionam sobre símbolos da cultura preta incessantemente e fazem comentários como “sua pele é tão bonita, que inveja dessa cor”. Tudo bem ao estilo Corra!, de Jordan Peele. Keef, então, compreende como as manifestações do racismo às vezes são sutis e estão, infelizmente, em toda parte.


A comédia investiga tópicos relevantes, como microagressões racistas e privilégio branco e como essas questões moldam e distinguem a experiência de sujeitos negros e brancos. Woke representa essas problemáticas e critica a forma como elas se tornam tão normalizadas que a sociedade, enquanto coletivo, simplesmente as enxerga como naturais. A série também critica a maneira que injustiças sociais contra a comunidade preta são banalizadas e facilmente esquecidas, além de serem vistas como simplesmente parte da esfera social. O genocídio contra a comunidade negra é tão trivializado pela sociedade que, muitas vezes, a violência contra animais é comparada e até mesmo considerada mais comovente do que a morte de uma pessoa preta, o que é inteligentemente representado em um dos episódios da série.


A produção do Hulu também explora como o privilégio branco se manifesta, na maioria das vezes de maneira óbvia e explícita, embora muitos indivíduos brancos se recusem a reconhecê-lo. Em uma determinada cena, Keef argumenta que ele foi jogado no chão pelos policiais mesmo sem motivação alguma. Mas quando seu amigo branco, Gunther, os confronta, absolutamente nada acontece com ele. Pessoas caucasianas podem se dar ao luxo de ter um comportamento exaltado enquanto indivíduos racializados correm o risco de perder a vida simplesmente por terem um objeto em mãos.

Woke sofre em alguns momentos com um tom inconsistente e encontra dificuldade em balancear seu senso de humor com os tópicos sociais que aborda. Mas mesmo não alcançando todo seu potencial, a série de Knight e Todd se destaca de outras produções do ano passado por abordar temas socialmente relevantes de uma forma irreverente e fugindo de certas obviedades sobre racismo. A comédia, com certeza, ainda tem muito a oferecer futuramente.


Título Original: Woke

Direção: Maurice Marable e Chioke Nassor

Episódios: 8 episódios

Duração: 22-34 minutos.

Elenco:  Lamorne Morris, T. Murph, Sasheer Zamata, Blake Anderson e Rose McIver

Sinopse: Woke acompanha Keef Knight, um cartunista que após vivenciar uma experiência traumática com racismo passa a ter uma nova consciência racial que se manifesta que uma forma inusitada.

TRAILER:

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