Crítica: Cracolândia (2020, de Edu Felistoque)


Quem, porventura, não é de São Paulo, pode se perguntar o que eu me perguntei, antes de me mudar: o que realmente é a Cracolândia?  

O nome é uma designação para situar uma região do centro de São Paulo com uma vasta população com condições precárias de vida, à mercê do crime organizado e do tráfico de crack e outros entorpecentes. 

 

No passado, o local era polo de produção cinematográfica e sediou estúdios hollywoodianos como a Paramount, a Fox e a MGM. Depois de um intenso processo de degradação, as imediações dos bairros Santa Efigênia e Luz carregaram o estigma e apelido de terra do crack. O problema, aliás continua aumentando: desde 2012, o número de pessoas em situação de rua cresceu 140%; estimativa que deve aumentar devido à crise econômica e a pandemia atual. 


O documentário reproduz uma fina trama política que espelha visões diferentes sobre direitos humanos. O filme Cracolândia faz um recorte da realidade do local: a câmera navega – quase sempre em um ângulo inclinado, de cima para baixo – pelos arredores das ruas tomadas por barracas, fogueiras e cenas de sofrimento coletivo. Depois, o documentário apresenta a figura de Heni Ozi Cukier, cientista político e atual deputado estadual de São Paulo pelo Partido Novo. 

 

O documentário se desdobra em duas partes: na primeira, o protagonista costura o diálogo que mescla as cenas do local degradado com a opinião de profissionais de justiça, de segurança pública e policiais, além de alguns poucos frequentadores. Já na segunda parte, Cukier viaja para países do hemisfério norte onde salas controladas de usos de entorpecentes são fornecidas com investimento público. 

 

A premissa tem boa filmagem e faz uso de belos takes mas se perde na montagem. O filme é monótono, ainda que tal fato não é, de longe, o que mais me incomodou. Paira, no discurso geral da obra, que a única saída para a contingência do problema é a atuação de um estado autoritário. 



Em mais de uma cena, a narrativa militarista tenta justificar o abuso policial contra os frequentadores a partir da naturalidade do comportamento agressivo ou reativo frente a pessoas que estão fora de si. Quando o filme busca uma narrativa dissonante, como a do Movimento Craco Resiste, a apresentação dos personagens que militam contra a ação policial sucede um comentário sobre a impossibilidade de existir tal movimento. A fala do entrevistado soa burlesca. 

 

Em 2004, o cineasta Marcus Prado leva uma câmera de filmagem para o aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Lá, a fala de uma catadora de lixo modificou os rumos do filme e, com alguma esperança de minha parte, do cinema documental brasileiro. Estamira falou mais alto que as imagens do lixo e da tragédia. Seu discurso filosófico era carregado de lucidez e de loucura, na mesma dose. 

 

O diretor de Estamira agiu com a premissa básica do documentário: o roteiro é a chave-mestra. Ele deve existir, mas deve também ser capaz de abrir todas as portas. A comparação me soa importante pois senti que em Cracolândia de Edu Felistoque, senti que perdemos uma Estamira

 

Em meio à uma ação policial seguida de certo furor, a câmera centra em uma mulher, que ia traduzindo um outro tipo de sentimento: ela parecia alegre. Com um véu na cabeça e sorrindo em meio ao caos, ela diz: “Eu amo muito o planeta Terra e todo mundo que existe”. A voz over a interrompe e pergunta o que ela estava achando da ação. 

 

Ela – que não é citada – diz que deus é maravilhoso e termina: “Ele sabe o que faz e eu não sei o que falo”. 

 

A ângulo de filmagem se esquiva da personagem, cancelando o contato. A cena escancarou minha maior insatisfação com o filme: em meio a tantos depoimentos técnicos engessados em uma estrutura pré-moldada, Cracolândia é um documentário que não ouve a voz invisibilizada. 



Título Original: Cracolândia

Direção: Edu Felistoque

Duração: 1h27

Sinopse: A partir de uma intensa pesquisa – e visto através de diferentes realidades, a dos que a estudam, as dos que tentam contê-la e a dos que vivem nela, o filme abre um debate a respeito da maior e mais impactante cena de uso aberto de crack do mundo: a “Cracolândia” de São Paulo. O filme, dirigido por Edu Felistoque, analisa as causas desse mal e suas progressões, além das táticas de combate já realizadas em São Paulo, abrindo um paralelo com as estratégias usadas em outros países.

Trailer:

 


Cracolândia faz parte da 44. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Você está acompanhando o festival? Conta pra gente qual dos filmes você quer assistir! 

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