Cinema Antirracista com a diretora Day Rodrigues



Nesta matéria é abordada a carreira de Day Rodrigues, a feminista, antirracista,  educadora social, escritora, diretora e roteirista negra que segue na luta para ser cada vez mais ouvida, tratando de temas relevantes em suas obras, e assim inspirando as muitas outras “Days” Brasil afora, assim esperamos. A força da representatividade é algo que ecoa, que faz uma total diferença no rumo da vida das pessoas, e ao convidar Day Rodrigues, esperamos que esse impacto se faça cada vez maior. Agradeço desde já por ela aceitado o convite e por ter gentilmente compartilhado toda sua trajetória e projetos conosco. Que as pessoas possam ver, através de sua história, que é possível sim a conquista de um espaço para seu discurso. Que a história de Day possa inspirar muitas outras. 

Day Rodrigues: 
        
        “Eu sou cineasta há 5 anos. Algo recente se comparado à minha trajetória profissional, pois antes de me tornar cineasta eu trabalhei com produção cultural por muito tempo. Agora me dedico muito mais ao audiovisual em termos de direção e roteiro. Eu me coloquei como diretora a partir do filme Mulheres Negras – Projetos de Mundo, que deu maior visibilidade para o meu trabalho, não só no estado de São Paulo, mas também em outras cidades e capitais do Brasil. E então eu fui contratada pela Spray Filmes, fundada pelo diretor Fernando Grostein, que é a pessoa que criou o filme Quebrando o Tabu, que hoje é uma plataforma de conteúdo nas redes sociais. 

         A partir daí eu fiz dois episódios para a série Quebrando o Tabu, para o canal GNT. O episódio Racismo e Resistência da primeira temporada, ganhou MIPCOM Diversify TV Excellence Awards 2019 (Cannes/ França). A Globosat foi responsável pela inscrição do episódio no festival. Essa conquista consolidou o meu lugar como diretora, pesquisadora e a possibilidade de ampliar o debate racial, também, na TV.     

O meu objetivo como diretora e roteirista é contar histórias propositivas, de afetos, de amor. Trago conteúdos que pensem o quanto pessoas negras têm uma subjetividade inenarrável dentro de um sistema que as impede de ter direitos básicos, por exemplo. Então eu penso que o meu fazer no audiovisual tem a ver com tudo isso justamente para trazer o quanto somos sujeitos políticos e, enquanto a sociedade brasileira não conseguir nos enxergar como tais, não conseguiremos viver numa democracia de fato”.

     
Como é ser diretora em projetos independentes e nos quais é contratada? 

         A diferença é que quando sou contratada, eu tenho uma pauta, um briefing que preciso seguir. E muitas vezes quando a equipe daquele projeto não está engajada profundamente na pauta do antirracismo, eu encontro muita dificuldade para trabalhar, pois sou questionada muitas vezes ao longo do processo. Então acontece de ter ocasiões que eu realizo o projeto para o qual fui contratada, mas não me sinto 100% satisfeita, pois nem sempre acho que entreguei o projeto à altura do meu trabalho, justamente por esses impasses de produção que acabam dificultando  um avanço da maneira necessária. 


         Os projetos independentes que faço são sempre parcerias com outras pessoas com o mesmo objetivo ou objetivos parecidos. Quando eu estou como diretora nos meus projetos independentes, eu sempre tento criar uma atmosfera da qual a gente saia fortalecido e satisfeito, e não que estejamos num ambiente de disputa de vaidades e interesses“. 

Conta mais do projeto Mulheres Negras – Projetos de Mundo, que como você mesma disse, acredita que foi o que te lançou de vez no mercado por conta do grande alcance que o projeto gerou. 

         “O filme Mulheres Negras – Projetos de Mundo foi realizado entre 2015 e 2016, para responder sobre os centros acadêmicos que não levam em consideração as mulheres negras e seus debates contra uma voz única e pensamento hegemônico. Assim, tal filme surgiu dentro de uma especialização em gestão cultural, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, como um trabalho de conclusão de curso. E por isso, não havia um financiamento e tivemos que realizá-lo com um orçamento próprio, logo, bastante limitado. Daí, não havia uma direção de arte ou uma pessoa para pensar a identidade visual. Tudo aconteceu de forma intuitiva mesmo. O local das entrevistas, que tem um fundo preto, este foi cedido por uma prima do Lucas Ogasawara, que tinha um estúdio, em Santos. A ideia era fazer todas as entrevistas por lá. Porém, com a falta de recurso e com a impossibilidade de duas entrevistadas não poderem também ir até Santos para serem entrevistadas, resolvemos adaptar um outro formato de locação, o que mudaria a proposta inicial (estúdio). Ao mesmo tempo, ao fazer esse filme pude entender como uma produção artística não acontece somente no campo do planejamento racional; e isso pode parecer meio óbvio, só que não é tão simples assim de se mensurar, quando estamos envolvidxs num projeto como esse. Então, sem combinar, Monique Evelle e Luana Hansen foram com cores de blusa igual a da cadeira: rosa. E aí, tivemos uma unidade visual para o filme: a presença de cores em preto, vermelho e rosa”. 


         “E sobre o fato do filme ter me tirado do anonimato, eu digo isso porque pude circular pelo Brasil, de forma direta e indireta, nos últimos quase quatro anos, desde a estreia em 12 de setembro de 2016 (Galeria Olido/ SP), por cidades como Salvador, Belém do Pará, Brasília, Aracajú, Conceição de Coité, São Paulo, Santos, Belo Horizonte, Florianópolis, Pantanal, Campinas, Porto Alegre, Santa Cruz do Rio Pardo, Valença do Piauí, Contagem, e uma exibição internacional, em Berlim, no Festival Gira. Foi transmitido também pela TVE, na Bahia. Em Recife, foi premiado em julho de 2017, no XXI Festival Cine PE, nas categorias direção e júri popular. Atualmente, fazz parte da programação do Canal Brasil. E até maio de 2021, o filme fará parte do catálogo da plataforma Spcine Play, pela Mostra de Cinema Negro, em parceria com a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E no dia 12 de junho de 2020, no contexto da pandemia, foi realizada a última exibição do filme com fala pública, no Cineclube Virtual da Spcine”.  

        


O filme Mulheres Negras – Projetos de Mundo conta com nomes de sucesso e famosos como por exemplo Djamila e também a cantora Preta-Rara. O contato com essas pessoas foi fácil? Como foi esse processo? 
          “O filme começou a ser pensado em 2015, quando eu ainda morava em Santos. Mudei para São Paulo em 2016. E na época da pesquisa e gravações, Djamila Ribeiro e Preta Rara moravam em Santos, também. A gente tinha além de uma relação de amizade, uma relação de parceria sobre os debates políticos antirracistas na cidade. Assim, a ideia do nome Mulheres Negras – Projetos de Mundo surgiu numa conversa entre Djamila e eu, inclusive, quando ela recomendou que eu deveria ler as feministas negras porque elas tinham projetos de mundo que abarcavam todas as outras camadas da sociedade. Achei aquilo muito bonito, mulheres que são a base da pirâmide social, mesmo assim conseguem pensar de forma propositiva os outros grupos que nos oprimem. Lógico que hoje entendo que as feministas negras têm essa perspectiva porque são atravessadas, na verdade, pelas violências de raça, gênero, orientação sexual e classe, e por isso tal capacidade analítica, só que não deixa de ser uma perspectiva enriquecedora quando pensamos na branquitude e principalmente em homens brancos privilegiados tão distantes de práticas emancipatórias e por liberdade para todos. Afinal, para enfrentarmos uma sociedade menos desigual não há como admitir a discrepância que vemos hoje, um grupo social privilegiado só por ser branco, homem, cis, em detrimento de todas as outras pessoas 


         E com a Preta-Rara, por ela também ser Rapper, já tivemos algumas parcerias em projetos culturais, desde 2013. O debate que ela traz sobre a vida das domésticas brasileiras e a sua formação em História permitem entrecruzar experiência e conteúdo, e somados ao seu ativismo nos abrem uma oportunidade de pensar a base escravocrata radicalmente, a falsa abolição (13 de maio) e o quanto estamos distantes de garantir os direitos trabalhistas e oportunidades para as mulheres negras, no mercado de trabalho. Por outro lado, a sua potência quanto artista é inconfundível, quando ela sobe no palco e emana uma voz de quebra de padrões, e paradigmas e potência de amor-próprio. Ou seja, tais encontros foram possíveis pelo nosso ativismo contra o racismo e machismo em nossa cidade natal, porque saímos de uma Santos extremamente conservadora e principalmente pela nossa vontade de pensar outros projetos de mundo para nós”. 



Sobre seu projeto: Uma Geografia das Desigualdades:

          “O filme Uma Geografia das Desigualdades foi feito a partir de uma solicitação e contratação da Oxfam Brasil. Portanto, a pesquisa era deles, e eu precisava trazer o debate sobre as desigualdades com o foco em mulheres negras. Então, a partir da minha experiência com o filme Mulheres Negras – Projetos de Mundo e o episódio Racismo e Resistência (Série Quebrando o Tabu/ GNT), eu queria fugir dos planos parados, em que a entrevistada sempre está sentada. A ideia de fazer em movimento partiu do meu diálogo com o diretor de fotografia, Rodrigo Machado, que já tinha trabalhado no episódio do Quebrando o Tabu e sabia da minha necessidade em inovar este formato jornalístico/documental. O Rodrigo trabalhou por alguns anos na Folha de São Paulo e tem em seu trabalho como fotógrafo tal particularidade de um olhar de documentarista também. Assim, isso nos possibilitou pensar numa fotografia que traz as contradições da cidade de São Paulo, tanto pela malha urbana tão desigual e discrepante, como porque o discurso da Joice Berth é rico em evidenciar como mulheres negras acabam sendo as maiores vítimas das violências das desigualdades no mercado de trabalho e o pensamento dela traz uma crítica aos lugares de poder. Este filme acaba sendo uma continuidade do projeto Mulheres Negras – Projetos de Mundo, mas, com o foco no direito às cidades”. 

Poderia abordar o conceito de que “O urbanismo é daltônico” de acordo com sua interpretação, por favor? 

             “Eu penso que esta ideia de urbanismo daltônico tem a ver com o fato de arquitetos, urbanistas e gestores serem incapazes de entender as causas do racismo nas cidades, e o fato de bairros de classe média e ricos serem quase exclusivamente formados por pessoas brancas. Ou seja, as pessoas negras habitam geralmente favelas e periferias por conta do racismo estrutural, desde que Brasil é Brasil, desde a sua formação no período pós (falsa) abolição”. 
Quando a ideia vem à sua cabeça geralmente ela já vem com o visual estético mais ou menos encaminhado ou você geralmente tem a ideia, mas descobre como vai mostrá-la tecnicamente é um processo mais lento e de descobrimento para você?
           “Pelo fato da minha graduação ter sido em Filosofia, o meu processo de realização num projeto audiovisual sempre parte da pesquisa/conteúdo, que me leva a desenvolver o argumento e a partir daí buscar as referências visuais e referências de narrativas. A partir do momento que reúno tais materiais, penso o texto e formato do roteiro. Porém, como os meus principais trabalhos são na linguagem documental, o ponto de partida é uma linha narrativa (premissas, atos, sinopse e personagens) e o argumento; e depois das gravações, faço a decupagem, e também uma seleção das principais falas que se relacionam com o argumento. Para a fase de montagem, costumo entregar o material para o editor(a) e garantir uma autonomia para que faça um primeiro corte com liberdade de criação. Depois, ou faço uma lista de alterações ou faço um roteiro de montagem, depende de quanto tempo terei para finalizar. E quando chego num corte bom, segundo o meu olhar de direção, divido com outras pessoas, seja com a equipe ou outras que possam trazer um olhar de público não ligado ao tema, por exemplo”. 


Os diretores e diretoras têm uma marca registrada ou pelo menos um gênero que é mais trabalhado ao longo de sua filmografia. Me conta o que você acha que permeia com certa frequência o seu imaginário, a sua marca registrada, a sua identidade enquanto diretora. 
           
       “Meu trabalho é principalmente documental. Hoje eu tenho quase 10 filmes, eu acho, e o ponto de partida é sempre uma pesquisa junto ao personagem/entrevistada, e alguns métodos de aproximação e distanciamento, para delinear a pauta para a entrevista.A fotografia é sempre bem detalhista e focada em retratos. E acredito que os meus trabalhos foram ganhando diferentes conotações visuais. Assim, se eu penso no meu primeiro filme (Ouro Verde – A Roda de Samba do Marapé, 2012), em que eu não era diretora ainda, mas,pelo fato da pesquisa ter nascido da minha vivência como espectadora junto ao grupo musical, este projeto ensinou muito sobre como estar num ambiente que se deseja filmar, logo, estabelecer uma relação entrevistador x entrevistado. Então, a partir daí, experimentei na prática como desenvolver uma narrativa documental. 



         Quando eu penso em Mulheres Negras – Projetos de Mundo, eu já penso numa proposta diferente. Visualmente, eu diria que trata-se de unir cores e movimentos, num processo dialógico entre Lucas Ogasawara e eu. E  com os planos abertos de mulheres negras sendo entrevistadas para aquilo trazer destaque para a fala delas. Sobre a presença de uma dançarina, de algo que me remete à cultura popular e que faz parte da minha pesquisa sobre negritude. Tem também o mar, trazendo uma referência à minha vida em Santos e ao meu respeito a tal simbologia. Além disso, traz também vários letterings, porque é uma analogia às citações escritas em livros, e as minhas referências literárias, porque eu também sou escritora. 



        E ainda sobre as minhas referências visuais, houve também a possibilidade  começar a fazer “filmes-viagens”. Então, eu pude gravar em novos ambientes e horizontes, como por exemplo, no Piauí, quando me fez refletir muito sobre as minhas origens, pois os meus pais são de lá. Esse projeto foi um que fiz com o Quebrando o Tabu. Afinal, quando a gente fala em antirracismo no Brasil, para mim também tem a ver pensar nos apagamentos das pessoas e suas origens, da cultura e da história brasileira e indígena. 



       Eu acredito que cada trabalho que fiz é fundamental para o que está para acontecer ainda. Aprendo e amadureço muito em termos reflexivos, e também estéticos e visuais com cada um deles. E para ampliar uma cinematografia, é necessário o acesso à experiência, ter coragem e ampliar os estudos em diferentes instâncias (desde da criação de métodos de criação e planejamento até a busca por referências – de outros e outras cineastas e também artistas da música, artes visuais e etc), que vão te permitir crescer como quem olha para o mundo e deseja a transformação da sociedade e então ir se encontrando, se aprimorando na linguagem audiovisual”.  


Projetos de Day: 


Mulheres Negras – Projeto de Mundo – Disponível no SPcine. 

Uma Geografia das Desigualdades – Disponível no site da Oxfam. 

Os dois episódios do Quebrando o Tabu que Day dirigiu estão disponíveis no GNT Play. E a primeira temporada está disponível também na Globo Play. 

Vídeoclipe: Papo Reto – Disponível no Youtube. 

Documentário – Ouro Verde: A Roda do Samba Marapé – Disponível no Youtube. 

Para Costurar Folhas Secas – Disponível no Youtube.  
E aí? Bora assistir?
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