No Brasil, os anos 1970 e 1980 marcam uma virada no nicho dos documentários: filmes como Mato Eles (Sergio Bianchi, 1982), Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984), Porto de Santos (Aloysio Raulino, 1978, imagem inicial deste texto) e Congo (Arthur Omar, 1972) principiam um movimento amplo de contaminação do documentário pela ficção, isto é, uma mudança no estatuto assumido para as imagens do real em jogo nessas obras. O que se poderia dizer é que foi alterada substancialmente a crença de que o documentário seria capaz de decifrar e explicar certa essência daquilo ou de quem é retratado, como se notava, por exemplo, nos importantes filmes da Caravana Farkas nos anos 1960. Com esse movimento, nota-se uma considerável alteração na figura do narrador – que praticamente desaparece ou é ironizado –, em certa economia da imagem e do essencial e, sobretudo, do papel do diretor. O documentário passa a ser compreendido como um discurso entre discursos, que não esgotará nunca seu objeto e, inclusive, nem mesmo uma posição de puro objeto torna-se possível para o que quer que seja – é cada vez mais difícil responder a simples pergunta sobre o que é este filme?
Alguns anos depois, pode-se observar um movimento simétrico ao que foi acima descrito: a contaminação da ficção pelo documentário. Em particular no cinema mineiro contemporâneo, a ficção ganha a premissa de um trabalho de campo para pesquisa de modos de vida de determinados bairros, grupos de indivíduos ou pessoas específicas, o que implica estudos sobre movimentos históricos, criação de textos conjuntamente a comunidades/grupos de indivíduos e formação de atores nestes lugares. Filmes como A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchôa, 2015), Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), Temporada (André Novais, 2018) No Coração do Mundo (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2019) e Baronesa (Juliana Antunes, 2017) apostam na utilização da realidade como um instante de verdade da ficção, e na ficção como meio de lançar luz para possibilidades latentes da realidade. Um esforço que resulta em obras de enorme alcance crítico pela inserção que se consegue – e em que se baseia – no cotidiano dos bairros e pessoas que aborda.
É interessante pensar como estes dois movimentos de desconfiança simultânea sobre o real e sobre a ficção – isto é, uma virada metadiscursiva – denotam uma necessidade de buscar maneiras de subverter uma relação passiva entre objetos e sujeitos, observadores e observados, bases materiais e resultados. Esta necessidade parece partir da crença, como se tem aqui defendido, de que a superação de posições sobre o real/no real só pode ser atingida a partir de um discurso que altere a estrutura do que é dito, e não simplesmente o conteúdo do dizer. Este que é, afinal, o abismo daquilo que convencionamos chamar de representatividade, isto é, validação imediata de elementos que sejam reconhecidos como socialmente significativos, mesmo que por muitas vezes estes elementos estejam dispostos de maneira conservadora. Mas isso é outra história: voltemos à nossa discussão.

A construção solitária da casa em Baronesa
Baronesa, filme magnífico de Juliana Antunes, é uma prova do que se consegue a partir da radicalização da relação ficção-realidade. Mais do que criar uma obra que pretenda abordar questões essenciais sobre mulheres da periferia, a diretora pretende criar um filme em que a vivência de determinadas pessoas em determinados bairros de uma determinada periferia consiga alterar o próprio processo de criação do filme, diminuindo no ato o risco do cinismo e da observação exotizante. Isto significou, para a diretora, anos de pesquisa até o interesse de algumas pessoas em se tornar personagem. Mas esse pressuposto, paralelamente a isso, não altera o conteúdo ficcional ou estético do texto e da representação – e é interessante nos perguntarmos a quem damos o direito da “arte” e da mimese e a quem temos designado apenas como representantes da “realidade” ou “das ruas” –, mas cria um poderoso jogo de identificação e distanciamento que consegue criar latências potentes tanto no real quanto na ficção.
Nos lembremos da sequência histórica em que as duas personagens principais conversam na porta de suas casas e são surpreendidas por tiros vindos de locais próximos, o que faz com que a câmera caia no chão, sendo rapidamente apanhada de volta. Se a cena é inteiramente ficcional (e eu particularmente não estou certo disso – quem souber me diga), há um enorme acerto nesta quebra da passividade na representação da violência, que atinge o próprio olhar do espectador, indo ao solo; mas se a cena é inteiramente não-ficcional, o acerto está em mantê-la dentro da obra de ficção, como um momento de verdade do filme e testemunho do enorme trabalho de pesquisa em jogo na formação do filme. Acertos de lado a lado, dúvidas sobre o estatuto das imagens também de lado a lado.
Assim, pensar neste tensionamento entre ficção e realidade é justamente conceber que as condições materiais de uma obra não interferem ou condicionam a elaboração de um objeto estético, mas atravessam esta construção de diferentes maneiras, a serem exploradas como instantes de quebra na ficção ou no documentário (como em Mato Eles, em que são alternados depoimentos falsos e verdadeiros, sendo impossível distinguir, dado o absurdo deles, qual é qual). É sintomático, assim, que o Brasil tenha dado tanto campo a estes experimentos, e isto parece depor sobre a complexidade sociológica, e consequentemente estética, em que se constituem os planos da experiência sensível por aqui.
O jogo de alternativas absurdas de Mato Eles
1 + 2 + 3 (Por um realismo especulativo)
O jornalista do programa Roda Viva pergunta a Mano Brown como é seu processo criativo. Mano Brown responde que o maior processo criativo é a necessidade, já que é a música que dá de comer a ele e sua família. É isso: talvez nessa resposta curta e grossa esteja tudo aquilo que se tentou dizer neste texto enorme até aqui. Não há lado de fora. Mas, para além de identificar nisso um atrelamento simples entre realidade e representação, algo que sempre é designado ao popular, como se as condições materiais fossem refletidas na obra, mero reflexo do real, – olha só o determinismo dos eugenistas entrando pela porta dos fundos –, devemos pensar no termo processo criativo colocado em jogo pela resposta. Para Brown, e também aqui, existe um termo do real que se impõe como necessidade da forma, mas não pela forma: as condições materiais atravessam o processo, mas ele permanece sendo elaboração e criatividade, proposição e descoberta. O mundo material é um plano indispensável disso, assim como diversos outros que o atravessam e se atravessam.
A representação é assim um gesto: ocorre como necessidade de um princípio de movimento, mas não conserva estes termos iniciais em sua resposta: contém e exclui, simultaneamente. Mas nada disso é novo para o cinema brasileiro, é claro, e aqui se tentou provar este ponto a partir de obras de diversos vieses e locais de enunciação. A mistura de gêneros, a quebra da passividade da observação, a internalização do aleatório, a radicalização da tensão entre ficção e não-ficção, a contaminação de registros e a criação de zonas de indeterminação: todas estas práticas serviram como testemunho de um esforço em não falsificar os termos em que uma obra se constrói e sobre os quais se elabora, isto é, não simplificar a relação entre realidade e ficção, base e representação, processo e obra. Quando aqui se diz que não há lado de fora, isso não pode significar nem pensar o mundo como representação, nem a ficção como expressão imediata de uma realidade: é pensar que qualquer divisão entre mundo e obra é arbitrária, não natural ou óbvia. E que cada obra realizará esta divisão à sua maneira.
Estes instantes de verdade do cinema brasileiro, que nunca se furtou de mexer nestas linhas e divisões e de deixar visíveis as cicatrizes deste processo, me parecem ser uma das mais significativas linhas de força desta trajetória. Nem negar o real – buscando o isolamento da autonomia fictícia tão sonhada pelos amantes do entretenimento –, nem negar a representação – buscando sociologizar tudo aquilo que é produzido como arte, colocá-lo numa causação óbvia entre sociedade e obra. O cinema brasileiro traz consigo a marca de um realismo especulativo como interminável processo de busca de formas de justificar sua própria existência na realidade em que se manifesta. Isto significa, assim, assumir que existe um real que escapa à imagem como totalidade, mas que ali permanece como instante de verdade e eixo de composição do processo.
Em outras palavras, o cinema brasileiro tem sido muito honesto consigo mesmo. E talvez seja justamente esta honestidade com as possibilidades do real e da representação que tenham afastado por tanto tempo os beatos do entretenimento, os conservadores da representação autônoma, os imbecis da busca pelo “popular” e os otários do cultura-não-oferece-nada-à-sociedade: essa dialética mórbida que tenta transformar uma linha de força em defeito, rebaixando a partir da distinção. Olhar para os termos do nosso realismo especulativo, contudo, seria olhar para as frestas também desta realidade podre que se fabrica e que se tenta impor como incontornável. Foi esta também a humilde tentativa deste texto, enfim.