Especial: Cinema Nacional #1 – Nacional por Multiplicação e Divisão.

A Grande Cidade (1966, Carlos Diegues)


O Minha Visão do Cinema vem por meio deste texto, inaugurar um especial mensal sobre o Cinema Nacional, buscando democratizar, indicar e suprimir o preconceito sobre o cinema, tão valioso, do nosso país.

Os textos serão escritos por Vitor Ribeiro. E as postagens serão todo dia 03, celebrando o primeiro filme nacional lançado no cinema datado em 03/08/1908

Sequência da Flor de Papel (1968, Pier Paolo Pazolini)

 É sem dúvidas um risco escolher, dentre todos os recortes críticos disponíveis, escrever neste espaço sobre algo que se chama Cinema nacional. Um risco porque esta expressão traz consigo camadas e camadas de discussões muitas vezes mal-elaboradas – quando ao menos bem intencionadas – ou puramente preconceituosas – quando perdidas na limitação ideológica – que negociam e renegociam o valor desta expressão diariamente. O grande problema destes debates tende a ser, e tem sido, a necessidade de aplicar um juízo absolutamente positivo ou negativo a um conceito que seria aparentemente simples, conceito este tomado como um objeto estático e dado a priori. Creio que aqui se iniciam os nossos reais problemas, e por isso mesmo é onde surge o interesse de criar e frequentar este espaço.

Um exemplo então do que estou a dizer. A indicação de Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019) ao Oscar de Melhor Documentário movimentou uma imensa máquina ideológica que de lado a lado insistiu por valorizar o filme unicamente por ele ser brasileiro (ou por ter determinado discurso político), ou desvalorizá-lo pelos mesmos motivos. Poucas considerações foram vistas sobre o discurso, as imagens, o tipo de produção, a eficácia ou não da narração (que, creio, formam uma obra mediana e inferior a um documentário de recorte similar como O Processo (Maria Ramos, 2018), mas isso é outra história). O filme brasileiro raramente tem direito de ser uma coisa além de brasileiro, porque a categoria Cinema Nacional tem sido jogada da crítica estética – que lê obras a partir de suas condições de produção – para a sociologia da arte – que observa apenas as condições de produção – de maneira irresponsável ou cínica, a partir de interesses em tudo alheios aos próprios filmes. O nacional parece ser o substantivo, e o cinema o adjetivo.
Por isso, neste primeiro texto que tenho o prazer de escrever aqui, gostaria de sugerir uma caracterização negativa e positiva do que, neste espaço, será considerado Cinema Nacional, explicando assim o recorte do que se fará por estas bandas.
Os Herdeiros (1969, Carlos Diegues)

Sendo assim, o Cinema nacional não será:

-Uma categoria já dada. O fato de um filme ser feito no Brasil o faz automaticamente um filme brasileiro? Um filme feito por um estrangeiro no Brasil – cite-se aqui Hector Babenco, Marcel Camus ou Ruy Guerra – pode ser um filme nacional? Um filme oriundo de um cineasta indígena e não-falado em português, como Ma Ê Dami Xina (Zezinho Yube, 2008) é um filme nacional? Note-se como esta categoria está muito longe de ser facilmente demarcável, estando em jogo próprio conceito de Estado como unificador da experiência individual e da vida social. Cada obra dará as medidas daquilo que diz.
Uma categoria excludente. Porque um filme brasileiro pode ser também latinoamericano, pode se inserir numa tradição ampla de representação da mulher, pode ser um drama ou uma comédia como tantas outras feitas por aí. Uma obra não precisa ou deve se balizar em um único ponto, sobretudo se este lugar é uma determinação em geral tão castradora como o Cinema nacional.
Um produto de intenção. Parece estúpido dizer, mas se um grupo de filipinos se reunir no Congo para fazer um filme em inglês com produção de espanhóis, este filme não será brasileiro nem que o queiram. Ficará depois mais claro o porquê de se dizer isto desta forma, sobretudo na consideração sobre o conceito material. 
-Uma categoria crítica. Caso contrário, se poderia falar de filmes mais brasileiros ou “melhor brasileiros” que outros: o absurdo do enunciado é o bastante.
-Uma categoria puramente estética. Já que não se pode mapear em uma obra, em suas falas, personagens ou fotografia, o que seria seu “teor de brasilidade”. E já note-se o juízo de classe fortíssimo que há em todas as apologias da brasilidade que se encontram por aí em rótulos como MPB ou Literatura Brasileira.
-Uma categoria puramente extraestética. Pois as condições de produção de uma obra não são o mesmo que a obra, nem a determinam em todos os seus aspectos. Nisto entraríamos em todos os dilemas sobre representatividade e as ligações muito difíceis entre ganhos políticos e ganhos estéticos: um filme sobre as lutas de grupos LGBTQI+, por exemplo, pode ter uma forma completamente conservadora, uma narrativa tradicional, um tom nostálgico e, simultaneamente, ser importante para a sociedade como campo de debate. As coisas não se determinam de lado a lado.
Como fica claro, tomaremos Cinema Nacional por um operador em constante negociação, dependente de diversos níveis de interpretação, sendo assim algo relacional. Assim, passemos à definição positiva da coisa. Cinema Nacional será:
-Um contexto em funcionamento em uma obra. E uma obra é uma resultante de inúmeros contextos que se cruzam e redefinem constantemente seu valor. Um vaso em uma cena de um filme pode se remeter a um deus grego, a um poema parnasiano, ao momento em que, em A Cor da Romã (Sergei Parajanov, 1968), o poeta lava seus pés; este vaso, além disso, pode ser representado com grandiosidade clássica, como afresco diante do vazio da vida burguesa, como parte de uma natureza morta. O fato de este vaso eventualmente estar em um filme feito no Brasil não determina o que ele pode significar, mas é um grau a mais do infinito processo de construção da significação de algo.
-Uma categoria política. Em um momento de desmonte do sistema público de fomento ao cinema no Brasil, assim como de enorme dificuldade de manutenção de todos os seus mecanismos de difusão e reprodução – vide o recente fechamento do Cinearte em São Paulo e a necessidade de aportes de mecenas de bancos privados para viabilização de alguns destes espaços – o operador Cinema Nacional passa a ser cada vez mais produtivo e efetivo. Está em jogo o local de existência de um mercado e de uma historicidade própria, e isto não é pouca coisa.
-Uma categoria material. Os créditos de Bacurau (Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho, 2019) deixam claro: um filme gera empregos e impacta a vida das pessoas que o produzem e consomem. Isto significa, portanto: um filme é um objeto da realidade, que atua na realidade. Para o bem ou para mal, esta realidade ainda se dá imediatamente dentro do espaço de um Estado nacional, que compartilha condições materiais entre grupos de indivíduos, a) podendo viabilizar ou inviabilizar a existência de um mercado – lembre-se de que, como conta Paulo Emílio Salles Gomes, o cinema brasileiro sofreu em seu percurso pela falta de luz elétrica, de pessoas habilitadas, de aparato técnico, de filme fotográfico, de estúdios, de salas de reprodução, de uma cinemateca, etc, e lembre-se por contraste como outros cinemas não apresentam este tipo de limitação material que aqui segue condicionando o plano estético e suas pretensões, b) sendo um espaço de partilha de experiências comuns, referências históricas, modos de ser e dizer, formas de vida. O cinema é mais um espaço em que se dá o imprescindível jogo democrático.
Sendo assim, quando falarmos de um Cinema nacional falaremos de termos que nos levarão a um realismo especulativo, isto é, a uma tentativa de tatear relações entre a objetividade de uma obra e a objetividade de suas condições de produção. Neste espaço de relação estará uma visão do nacional que não seja de subtração, em que se retirando aquilo pretensamente “exterior” se chegaria a uma pureza brasileira intrínseca, como criticava Roberto Schwarz, mas de multiplicação e divisão, observando como este operador pode estar em voga de diferentes maneiras e lançando a diversos aspectos de filmes distintos, que por sua vez lançarão luz também ao conceito, sendo nenhuma das relações exclusiva.
(Pronto, este é o palavrório necessário para começar. Espero que ele não tenha escondido o fato de este texto, assim como os que se sucederão, ser simplesmente uma carta de amor.)


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