Crítica: O Show de Truman (1998, de Peter Weir)


ATENÇÃO: Esta crítica contém spoilers.

Se existe um filme que com certeza figura entre os mais lembrados, mais aclamados ou grandes sucessos da década de 90, com certeza é O Show de Truman. Lançado em 1998, narra a história de Truman Burbank, um homem de 30 anos que vive uma vida pacata e aparentemente normal como vendedor de seguros em uma cidade portuária. Entre a rotina com a esposa perfeita e a e as noites de golfe com seu melhor amigo perfeito, Truman começa a sentir que, embora tudo pareça mais do que bem, algo está muito errado; gerando dúvidas sobre a real natureza de sua vida, ou se apenas habita uma grande mentira.
Pois bem, acho que, devido à grande fama e disseminação do filme (também sua assiduidade na Sessão da Tarde), não é novidade para ninguém de que a trama do longa gira em torno da confirmação das suspeitas do personagem: ele, na realidade, vive em um reality show. Todos os momentos de sua vida, desde os mais íntimos a até os mais públicos, são exibidos em todos os televisores do planeta, 24 horas por dia e 7 dias por semana. Pequenas câmeras são espalhadas por todos (TODOS) os ambientes que frequenta e pessoas que convive. Ainda, todos os indivíduos com que troca qualquer palavra, incluindo sua família e amigos, são atores. 

O
longa conta com a direção muito bem acertada de Perer Weir, que
consegue equilibrar uma história extremamente dramática com vários
momentos de humor, ponto faci
lmente percebido pela presença de Jim Carrey no papel do protagonista. O
filme brinca com a capacidade do personagem de questionar seus
conhecidos para confirmar a verdade que habita em sua cabeça, com
situações inusitadas e repentinas que são a representação do termo deus ex machina,
o artifício de roteiro em que coisas magicamente acontecem para
solucionar situações de conflito. Situações que são reforçadas justamente pela atuação
cômica de Jim Carrey que, no auge de sua carreira, dava caretas
expressivas e engraçadas ao personagem em crise existencial.

Pode
parecer estranho que um filme com tal capacidade dramática escolha
colocar alguns momentos de alívio cômico, o que até pode parecer algo que não
combine. Mas talvez o filme seja o que é hoje por conta dessa mescla de
gêneros, pois além da já dita relação entre o humor e o drama, temos a
relação entre nós, espectadores e o entretenimento baseado meramente na
vida comum de uma pessoa, com todas as surpresas e rotinas que possa
ter.

Não somente, a filmagem e planos das cenas estão em um equilíbrio perfeito entre técnica e amadorismo para assim representar as diferentes fontes de filmagem que O Show de Truman, como programa e filme, possui.

E, com toda certeza, esse é o ponto forte do filme. O Show de Truman equilibra de forma maestral seus conteúdos mobilizados, deixando claro e cômico o que deseja passar. Em uma metalinguagem que não é necessariamente inovadora, mas aqui muito bem executada, a relação de assistirmos um filme que critica a forma que lidamos com a exposição diária de vidas e privacidades pela mídia; e como, mesmo criticando e entendendo as negativas de como o mundo contemporâneo rege nosso entretenimento, estamos ali, assistindo a vida de Truman como qualquer outro espectador.

A comparação clara que o filme faz com nosso deleite por reality shows, e até mesmo como esses são vendidos no rótulo da “imprevisibilidade da realidade é essência da diversão” pode ser lido através do que é chamado de filosofia high-pop, sendo a
aproximação de elementos filosóficos altamente abstratos ao discurso
mais acessível e disseminado dos meios midiáticos, seja qual for esse
meio, destinados ao entretenimento. A melhor forma de classificar O Show de Truman e entender suas contradições é através desse conceito. 

Não temos somente uma referência, mas praticamente um grito ao “mito da caverna” de Platão. Todo o movimento do personagem de habitar um mundo televisionado, o mundo das sombras, e desconhecer a verdade e a realidade concreta, o mundo das ideias, nos faz caminhar para a tensão de cada pergunta feita e cada falha encontrada, assim como as dores de perceber, pouco a pouco, que tudo ao seu redor é uma grande mentira, similar à dolorosa sensação de sair da caverna e machucar os olhos com a claridade da verdade.

E o confronto com a identidade de um Truman que conhecemos com quem Truman realmente é deixa o filme dentro de uma profundidade ímpar, que muitas vezes parece ser ignorada pela impressão cômica dos fatos narrados. Oras, da mesma forma que o personagem capta a realidade de forma deturpada pois vive dentro de uma construção cinematográfica, nós também temos uma percepção deturpada de quem ele é, assim como somos gradativamente alheios à nossa própria realidade por, justamente, assistir e esperar as surpresas de uma outra vida que não a nossa, colando nossos próprios acontecimentos e experiências em segundo plano.

Claro que isso ocasiona um caráter relativamente moralista ao modo como geramos nosso entretenimento, deixando a sensação de que assistir tais programas é, além de financiar uma indústria fora de controle, prejudicial à nossa própria vida. Mas também prova a capacidade do filme em “envelhecer bem” e trazer questionamentos muito pertinentes e atuais ao debate sobre até onde iríamos para mercadorizar “o show da vida”, contradição lindamente mostrada na cena em que os dois guardas, ao presenciarem o fim do programa, questionam-se sobre o que mais está passando na TV.

Por isso, ao longo do filme, entendemos que o fato dele estar dentro de um programa de televisão não é lá o grande plot twist da trama, na realidade somos informados de que estamos vendo um programa dentro de um filme logo no começo. O que importa é como Truman lida com isso e qual será sua decisão. Decisão esta que encerra com chave de ouro a história narrada, mostrando que, apesar do medo de sair de sua perfeita, mas falsa, vida, Truman prefere a realidade que desconhece; gerando uma das cenas mais emblemáticas da história recente do cinema em que o protagonista caminha pelo horizonte artificial de seu mundo e se despede do público.




O Show de Truman é um excelente filme, um exemplo mais do que concreto de que é possível conciliar temas filosóficos de alta complexidade com o entretenimento cinematográfico, instigando reflexões profundas e capazes de tocar aqueles que estão assistindo. Não
saberemos como será a vida de Truman após dar seu primeiro passo fora
do estúdio, menos ainda se conseguirá reencontrar o grande amor de sua
vida, mas sabemos que, finalmente, está livre e tomando suas próprias decisões sem a observação de qualquer um de nós.


Ou será que não? 

 

Título Original: The Truman Show

Direção: Peter Weir 
 





Duração: 103 minutos
 





Elenco: Jim Carrey, Laura Linney, Natascha McElhone, Ed Harris, Noah Emmerich e Heidi Schanz
 
Sinopse:Pacato vendedor de seguros (Jim Carrey) tem sua vida virada de cabeça para baixo quando descobre que é o astro, desde que nasceu, de um show de televisão dedicado a acompanhar todos os passos de sua existência.
Trailer:


Bônus:

Para aqueles que quiserem saber mais sobre o o conceito de filosofia high-pop e sua aplicabilidade, fica a recomendação de leitura da tese de doutorado da socióloga Tatiana Amendola Sanches, intitulada Filosofia Selfie-Service: Uma Análise Das Ofertas da TSOL e das Obras de Alain de Bottom para as Demandas de um Self Perdido. A tese encontra-se disponível no banco virtual de teses da UNICAMP.


Gostou da crítica? Mais ainda do filme? O que faria no lugar de Truman? Deixe nos comentários o que achou e não deixe de acompanhar a programação do Minha Visão do Cinema!

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