Crítica: Aniara (2019, de Pella Kagerman e Hugo Lilja)

O destaque da vez é para o filme sueco Aniara, lançado no ano passado, e dirigido por Pella Kagerman e Hugo Lilja, cujo roteiro e execução levam o espectador a uma viagem espacial com altos tons de frustração e análise antropológica e reflexão sobre a humanidade. O filme conta a história de um futuro distante, no qual a Terra está sendo gradualmente des-populada, a ideia da vez é transportar as pessoas para viver em Marte, no qual uma fonte de água foi descoberta e a vida tornou-se possível. A obra mostra uma tripulação a bordo de uma nave espacial chamada “Aniara”, cujo objetivo é realizar o trajeto Terra-Marte em, aproximadamente, duas semanas, mas, tal não é a surpresa e caos dos passageiros quando o capitão anuncia que, devido a uma colisão com um corpo celestial perdido, a nave precisou ejetar todo o seu estoque de combustível, fazendo com que, em uma atitude emergencial, a nave saísse de órbita e não tivesse como retornar. Ele dá uma nova previsão de chegada a Marte: no máximo dois anos.
O nome “Aniara” é de origem nórdica, podendo ser traduzido como “triste, desesperador”, sendo que o filme é a adaptação de um poema homônimo do autor sueco Harry Edmund Martinson, publicado em 1956, com aproximadamente 103 cantos, contando de forma poética a jornada da espaçonave carregando humanos através das galáxias e dos tempos. Como
é compreensível em um filme que se passa no espaço, um dos temas
abordados mais frequentemente em Aniara é a temática do isolamento, o
quão claustrofóbico é saber que se está dentro de um objeto voador que
navega através da interminável galáxia? Como diz a personagem da astrônoma, um
verdadeiro “sarcófago”. 
O filme trabalha inúmeras emoções
humanas, desde aquelas que produzem ligações e vida, como o amor, a
paixão, o nascimento e a comunhão, mas principalmente aquelas que
provocam destruição, gritos de pulsão de morte: suicídio, hipocrisia,
egoísmo, violência, etc. A sensação de desamparo ao final me remete ao
que senti assistindo a obra O Sétimo Continente de Michael Haneke. Poucas obras, incluídas na interseção entre os gêneros drama e ficção científica conseguem atingir este nível de desolação e confrontação com o desconhecido e com a própria mortalidade perante a infinitude do cosmo. 


Um dos pontos principais trazidos pelo filme é o desenvolvimento de uma relação entre máquina e ser humano, representado por “Mima”, uma espécie de máquina com inteligência artificial (I.A.), capaz de se conectar à psique dos tripulantes e reconectá-los, por meio de uma hipnose induzida, a memórias que têm da sua vida na Terra. Por outro lado, temos a personagem de Emelie Jonsson, chamada de “Mimaroben”, apelidada desta forma justamente por ser a única pessoa capaz de estabelecer um vínculo com Mima – talvez por não demandar nada em troca a não ser a própria existência dela – trabalhando como uma guia da experiência.

Acredito que a presença da I.A. mostre o quanto os seres humanos têm a necessidade de estarem conectados às suas memórias, carregadas de afeto, sejam elas positivas ou negativas, bem como a necessidade de manter um vínculo com a arte, como uma forma de sobreviver ao real do cotidiano, de fantasiar que outras realidades são possíveis. Além disso, é notável o quanto a máquina é humanizada a ponto de sentir as emoções humanas e ao mesmo tempo horrorizada com a visão desta mesma humanidade, que pode ser tão maldosa, brutal e horrenda tanto quanto bela e sublime. E o quanto as pessoas não sabem respeitar o seu uso, apenas a consomem em busca de uma visão perdida da Terra, chegando a adoecê-la e contaminá-la com o passar dos anos, até que Mima entra em colapso autoinduzido após uma crise existencial. 



Importante ressaltar que Aniara se utiliza de muitos elementos de ficção científica, entre eles o artifício de imaginar e construir uma realidade coerente do futuro da humanidade, baseado no que temos como fonte histórica de nossos antepassados. Neste universo, em que os seres humanos habitam um sarcófago que passeia infinitamente pelo espaço, surge a necessidade de um deus, de uma explicação para aquela situação, de novos hábitos, novas crenças, uma nova religião – afinal, sabe-se que, independente de século, o ser humano sempre buscou por uma explicação para sua existência e sua condição. 

Nisso, tem uma qualidade que relembra 2001: Uma Odisseia no Espaço
(1968), no sentido em que talvez viajem dentro do próprio monolito, as
pessoas a bordo do Aniara tentam fazer da própria condição inescapável
uma fonte de sentido, filosofia e fé.
Aniara é um dos estudos em ficção antropológica mais interessantes dos últimos tempos, certamente uma das ficções mais angustiantes e melhor construídas dos últimos tempos, juntamente com Upgrade (2018), High Life (2019), Beyond the Black Rainbow (2010), para citar alguns dos mais interessantes filmes de ficção da nossa década.


Título Original: Aniara

Direção: Pella Kagerman, Hugo Lilja

Duração: 106 minutos

Elenco: Emelie Jonsson, Bianca Cruzeiro, Arvin Kananian, Jamil Drissi, David Nzinga

Sinopse: Depois da destruição do planeta Terra, naves cheias de humanos são
enviadas para estabelecer colônia em Marte. Quando uma das naves sofre
um acidente e sai de percurso, seus passageiros obcecados por consumo se
veem obrigados a refletir sobre seu lugar no universo.

Trailer:



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2 thoughts on “Crítica: Aniara (2019, de Pella Kagerman e Hugo Lilja)”

  1. Primeiro, parabéns por escrever sobre arte na internet! Ler algo que não seja memetizado é ótimo! Acabei de assistir ao filme, quase 2 anos depois dessa postagem, e vim ler sobre, e quem sabe compartilhar o sentimento de desolação que o filme traz. Além disso, sempre que faltou esperança aos navegantes, a situação degringolou. Será isso da nossa natureza ou uma construção cultural? Sobre o tema, a série Battlestar Galactica aborda outros aspectos, com todo o tempo que uma série tem para tratá-los.
    Hoje, com mais de um ano de pandemia, pessoas responsáveis estão em suas próprias naves. A sorte delas é que a vacina trará a nave ao seu curso novamente.
    Das irresponsáveis não quero nem falar, não merecem.
    Não sei se viu, nem se gosta do tema Ufo, mas um filme legal é Na Vastidão da Noite, tem na Amazon Prime.

    1. Olá Ricardo, falo em nome da autora da matéria, que não se encontra mais na equipe. Obrigado pelos elogios e tens razão em tudo que disse. Que essa vacina venha logo e que mais gente fale de cultura. E sim, Na Vastidão da Noite é maravilhoso, uns dos melhores recentemente se tratando de UFO.

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