Crítica: O Homem Elefante (1980, de David Lynch)


Há alguns filmes que conseguem criar uma proeza muito particular e dificilmente atingível. Não simplesmente o feitio de produzir um sentimento triste ou algo do tipo, mas algo além, algo mais introspectivo na psicologia humana. Certas obras possuem a particularidade de atingir verdadeiras reflexões sobre a condição humana e, assim, adentrar profundamente no emocional, criar uma conexão inabalável. 


O Homem Elefante, nas mãos do cineasta norte-americano David Lynch, possui, devidamente, essa capacidade. Transformou-se em um dos filmes mais tristes já feitos e justamente por conseguir alcançar o patamar de uma obra que reflete sobre esse tema mais profundo: um retrato do que é ser humano.

O filme propõe-se a contar a história real de Joseph Merrick (no filme, nomeado John Merrick por conta de um erro nos cadernos do médico Frederick Treves), interpretado por John Hurt, um homem portador de uma rara síndrome que deforma partes de seu corpo de uma maneira absurda, no século XIX. Encontrado em péssimas condições e em exibição em um show de horrores pelo doutor Treves (Anthony Hopkins), o rapaz é levado para um hospital para ser estudado e tratado de maneira decente. Lá, ele se mostra cada vez menos um monstro ou um animal, e mais um ser humano doce, inteligente, com ar nobre e cheio de dores resultantes de uma existência miserável.



Lynch, que já havia dirigido o peculiar Eraserhead, cria toda uma investigação baseada no que nos faz ser humanos. Para isso, elabora diversas antíteses entre atitudes más de pessoas consideradas “normais” e o mais belo comportamento vindo do “homem elefante”. E isso sem se distanciar de sua característica surrealista já expressada em seu filme anterior; na verdade, é justamente esta estética e sob esta ótica que o diretor consegue conduzir a história através de uma linha que mistura o estranho, assustador e bizarro, com o belo, melancólico e triste. O cineasta utiliza sobreposições de planos entre elefantes e a figura de Merrick para nos dar o contraste necessário do bizarro, além de acertar na construção do clima na primeira metade do filme, de forma que o homem elefante seja, realmente, apresentado como uma criatura, fruto do estranho.

Mas o acerto da direção, em conjunto com o roteiro (escrito por Lynch, Christopher De Vore e Eric Bergren), está em, aos poucos, humanizar a personagem e nos mostrar seu verdadeiro eu. O último, através da escrita de situações em que Merrick entra em contato com diversas pessoas e da construção gradativa de uma abertura de sua personalidade (aos poucos, ele se mostra capaz de falar, de ler e de ser extremamente educado e cavalheiro), e a direção, através do jogo de luz e câmera que vai estabilizando a vista do espectador ao lado menos deformado da personagem, assim como vai clarificando o ambiente cada vez mais, tornando-o menos opressivo.




E é através dessa escrita gradativa, muitas vezes bem episódica, que o filme vai impulsionando seus questionamentos. O que nos faz, verdadeiramente, humanos? O quão Treves pode ajudar o homem elefante a viver normalmente? Estaria ele realmente o auxiliando ou apenas tornando-o novamente uma atração, agora das camadas mais altas da sociedade? Trata-se de uma investigação dos preconceitos e do que coloca o homem em um padrão normativo de ser através não apenas de suas características físicas, mas também de seu interior.

No entanto, o que torna esta obra extremamente triste vai além destes pontos estabelecidos pelo roteiro e no desenvolvimento da história e da personagem. É, na verdade, a soma de diversos fatores audiovisuais que contribuem para a construção do clima melancólico: o uso do preto e branco, que transmite uma sensação deslocada do tempo, assim como a brilhante trilha sonora de John Morris, que realça os momentos belos, tensos e fúnebres, e as atuações. 


O que John Hurt consegue transmitir, seja sob a máscara que esconde o rosto do monstro, seja sob a maquiagem magnífica que reconstrói as deformações quase idênticas às verdadeiras, perpassa o plano de uma boa atuação, e é genial como ele consegue fazer isso através de dois elementos: do olhar e da voz. O ator imprime uma empatia enorme quando fala delicadamente, mostrando-nos o lado humano da personagem, e também a dureza de uma vida marcada pelo castigo, quando olha diretamente para a câmera com uma melancolia estonteante. O Homem Elefante é um daqueles filmes que, de tão incômodo nas ações desumanas, atinge em cheio o espectador e faz o questionar a si próprio, tirando-o de uma zona de conforto e o colocando no chão.



Lynch é um diretor que possui suas diversas particularidades e, em seu primeiro filme encomendado por um estúdio, não deixa de as esboçar nas camadas visuais e narrativas. E sempre com um questionamento filosófico arrebatador, ainda que se alongue demais em algumas cenas. É o responsável pela criação de um dos filmes mais melancolicamente sentimentais, mas de uma maneira fúnebre, que investiga o humano e, ao mesmo tempo, traz ao espectador cenas belíssimas sem perder sua aura triste, como na cena final do longa, onde o homem elefante, após todo o sofrimento, busca deixar de ser animal para ser apenas humano.


Título original: The Elephant Man

Direção: David Lynch

Duração: 124 minutos

Elenco: John Hurt, Anthony Hopkins, Anne Bancroft, John Gielgud

Sinopse: A história de John Merrick, um desafortunado cidadão da Inglaterra vitoriana que era portador do caso mais grave de neurofibromatose múltipla registrado, tendo 90% do seu corpo deformado. Esta situação tendia fazer com que ele passasse toda a sua existência se exibindo em circos de variedades como um monstro. Inicialmente era considerado um débil mental pela sua dificuldade de falar, até que um médico, Frederick Treves, o descobriu e o levou para um hospital. Lá Merrick se liberou emocionalmente e intelectualmente, além de se mostrar uma pessoa sensível ao extremo, que conseguiu recuperar sua dignidade.

Trailer:
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4 thoughts on “Crítica: O Homem Elefante (1980, de David Lynch)”

    1. Concordo totalmente, fui assistir pensando ser um Eraserhead e me surpreendi com toda a melancolia e a forma sensível com que os temas são tratados no filme. Obra incrível!

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