O que a polêmica classificação da revista Variety diz sobre as latinas em Hollywood?

A cerimônia do Globo de Ouro ocorreu no dia 28 de fevereiro deste ano, e entre destaques como Nomadland, Borat 2 e a aclamada The CrownO Gambito da Rainha também conquistou espaço, entre outras vitórias, com a de Anya Taylor-Joy por melhor atriz de minissérie em seu papel como Beth Harmon. A atriz de apenas 24 anos, que mostra cada vez mais seu talento em produções como Peaky Blinders, Fragmentado e A Bruxa, foi definida pela redatora Danielle Turchiano, da Variety, como “woman of color – ou mulher de cor“, em português – no texto sobre a premiação. Nas palavras de Turchiano:

A argentina Taylor-Joy é a primeira mulher de cor a ganhar essa categoria desde Queen Latifah, em 2008, e apenas a quinta mulher de cor a ganhar desde 1982, quando a categoria foi introduzida. S. Epatha Merkerson, Halle Berry e Alfre Woodard foram as outras ganhadoras anteriores.

(Em cima, Queen Latifah e S. Epatha Merkerson; abaixo, Halle Berry e Alfre Woodard, respectivamente.)

Despertando polêmica acerca das classificações utilizadas nos Estados Unidos, as redes sociais fervilharam a tal ponto que a revista americana se viu obrigada a modificar o artigo, esclarecendo que a atriz se considera uma “latina branca”. Melhorou? Claro que não. Afinal, o que está por trás de definições como “pessoa de cor” ou “latina” e o peso delas?

A precisa definição do termo variou muito ao longo do tempo e dos estados. Um exemplo é do jornal Baltimore Afro-American, que determinou, em novembro de 1912, o significado de “pessoa de cor” se tratar de:

Os estatutos de Kentucky, Maryland, Mississippi, Carolina do Norte, Tennessee e Texas afirmam que uma pessoa de cor’ é aquela que é descendente de um negro até a terceira geração, inclusive, embora um ancestral em cada geração possa ter sido branco. De acordo com a lei do Alabama, uma pessoa é de cor quando teve algum sangue negro em sua linhagem por cinco gerações. () Em Arkansas, ‘pessoas de cor’ incluem todos os que têm uma mistura visível e distinta de sangue africano. () Assim, parece que um negro em um estado nem sempre é negro em outro.

Utilizado exclusivamente nos Estados Unidos para descrever negros, “latinos”, asiático-americanos e, inclusive, os próprios nativo-americanos, o termo enfatiza o racismo estrutural e institucional sofrido por esses grupos. Originalmente utilizado já em 1796, de acordo com o American Heritage Guide to Contemporary Usage and Style, fazia referência àqueles de descendência mista negra e europeia, divergindo do negro “propriamente dito”.

Na guerra civil americana, no entanto, o termo foi amplamente adotado como rótulo para qualquer um que fosse negro, independente de descendência. Hoje, conotado de modo ainda mais amplo, “pessoa de cor” no país é visto como todos os nãoeuropeus, colocando Estados Unidos e Europa em um patamar acima do resto do mundo.

E onde entra Anya Taylor-Joy em toda essa discussão? Se o termo “latinos” já reduz diversos povos, crenças, línguas, políticas e economias diversas a uma única falsa ideia de homogeneidade, imagina a ideia de “pessoas de cor”. Principalmente quando se parte da ideia de nacionalidade para definir cor de pele.


No caso da atriz, nascida em Miami, nos Estados Unidos, o pai é argentino de raízes escocesas, e a mãe, zambiana com origens espanholas e inglesas, fazendo com que Anya se sintadiferente. Como ela mesma disse, “venho de muitos lugares, mas minha qualidade e minha atitude perante a vida vêm da Argentina. Eu realmente aprecio essa parte da minha história. Sinto-me muito orgulhosa de vir da Argentina”. Isso porque a garota mudou-se com os pais ainda muito pequena para o país, onde morou até os seis anos.

De acordo com a professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Éfren Pérez, “com relação a essa atriz, é claro que sua aparência é mais europeia do que a de outros latinos, que podem ser de origem mexicana ou porto-riquenha, por exemplo. Ela não se parece com esse padrão”. Mas qual então será esse padrão? Ser considerada “latina” nos Estados Unidos é sinônimo de se esforçar o triplo para conseguir 1/3 da mesma quantidade de trabalho que outras atrizes com aparência “mais europeia”, ser mais sexualizada, ter menos destaque, trabalhar arduamente para perder o sotaque na tentativa de ganhar mais papéis para se ver forçada a carregá-lo em séries e filmes de maneira caricata e ser alvo de muito mais assédio.


Em estudo elaborado pela Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da Califórnia, os “latinos” são apontados como minoria mais subrepresentada da indústria cinematográfica estadunidense, além de o grupo mais sexualizado; e isso desde o cinema mudo. Estereótipos, erros geográficos e étnicos eram comuns em filmes da época, em que a América Latina era representada como um lugar cheio de bandidos com comportamentos bárbaros e selvagens. Mais recentemente, no cinema falado, é possível perceber um novo fator: uma aparente vontade permanente de ignorar o fato de, apenas na América do Sul, serem falados não apenas o espanhol como língua nativa, mas português, inglês, holandês e francês.

(Os Simpsons em sua primeira visita ao Brasil, com um macaco como símbolo da companhia aérea. Nessa mesma viagem, Homer é sequestrado, Bart aprende espanhol e macacos andam na rua.)
Se a mulher, de modo geral, é objetificada e retratada através de arquétipos e estereótipos fundamentados sob uma ótica majoritariamente masculina, a mulher “latina” é moldada em estereótipos ainda mais incisivos e degradantes. É ela a permissiva, a hipersexualizada, a de sotaque extremamente carregado e muitas vezes não tão independentes quanto as americanas. Trata-se aqui de um caso velado de xenofobia com um grupo inteiro de países sobre os quais mal se conhece.

E casos assim parecem longe de acabar, como a Variety bem nos mostra; ou ainda comentários como de Ellen DeGeneres para a atriz Sofia Vergara, em que dizia:Você está no seriado [Modern Family] há 10 anos e seu sotaque só piorou, como isso é possível?”; atrizes latinas desistindo de suas carreiras cansadas de serem hipersexualizadas constantemente; e, inclusive, uma experiência da própria autora do texto que estão lendo. Também atriz, em 2019 tive a experiência humilhante de ouvir, em um curso em Los Angeles, de colegas italianos, que eles não me chamavam para gravar com eles por ter “feições muito peculiares”. Será que agora entendem a crítica feita em Bacurau?

O que achou sobre a polêmica da Variety, sobre o termo “latinos” para definir uma gama de nacionalidades e como somos tratados em Hollywood? Deixa aí embaixo nos comentários 😉

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