O amor e a dor em Malcolm & Marie

O mais novo filme de Sam Levinson (Euphoria) segue uma noite conturbada na vida do casal que dá nome ao filme. Com apenas John David Washington (Tenet) e Zendaya (Euphoria) em cena, acompanhamos por 1h46 os altos e baixos do que parece ser o maior conflito do relacionamento dos dois. Além disso, o longa, produto de uma quarentena quase infinita, também é recheado de críticas à forma como a indústria cinematográfica trata o cinema, pontadas diretas que não ditam um discurso, mas abrem margem para discussão. Assim, Malcolm & Marie mostra ao espectador, através de diálogos, enquadramentos e atuações, o amor nas suas melhores e piores formas, e nos ensina que nem sempre é uma questão de certo ou errado, só é preciso analisar como as coisas chegaram até ali.

A narrativa tem início com a chegada do casal à casa que a princípio pensamos ser deles. Vestindo roupas de gala, Malcolm coloca uma música alta para celebrar e grita que Marie está linda; ela, por sua vez, não parece muito feliz. Marie, então, posterga a discussão iminente — em vez de falar, faz o que acha que precisa fazer — e prepara um macarrão com queijo para o namorado. Conforme os diálogos avançam, descobrimos que Malcolm é um cineasta e eles acabaram de sair da première de seu filme. Toda a discussão começa quando Marie evidencia que, em seu discurso, Malcolm agradeceu a todos, menos a ela.
O que para Malcolm pareceu ser apenas um erro, para Marie foi a evidência de uma fatalidade: de que o relacionamento deles não era mais tão bom, de que Malcolm não mais a apreciava e, acima de tudo, da ingratidão do namorado por ela, já que ela jura que o filme dele foi baseado na vida dela. Se não fosse o bastante, em vez de tentar entender os pontos de Marie, Malcolm compra a briga e começa a falar o seu ponto de vista. Por muito tempo, parece que nenhum dos dois querem se ouvir, eles só querem se fazer ser ouvidos.

Sam Levinson, tanto na direção quanto na escrita do roteiro, teve a sensibilidade de trazer para as telas a briga real de um casal que se ama, mas que deixou pequenos desentendimentos e ressentimentos se tornarem uma bola de neve que culminou naquela noite — a melhor e a pior da vida de Malcolm segundo ele mesmo. A grande briga, todavia, não acontece o tempo todo; em meio a discussões e apontamentos nada empáticos da parte dos dois, eles elogiam um ao outro, têm discussões sobre cinema, incluindo questões de representatividade e perspectiva, e ficam aflitos ao lerem as críticas que estão saindo sobre o filme de Malcolm. Na verdade, nessas horas, ele, por ser o responsável pela obra, fica nervoso, e o papel de Zendaya se torna apoiá-lo e tentar acalmá-lo. Nesses pequenos momentos, fica evidente o quanto eles se amam.

Completamente exibido em preto e branco, Malcolm & Marie traz para a mesa, como já dito, conversas que podem ser amplamente discutidas, mas que o filme apenas pontua, como se fosse o início de uma discussão. Muitos podem acreditar que os pontos de vista abordados são por vezes rasos, entretanto não acho que o papel do longa era, de fato, debater a fundo tais questões, mas mostrar que elas existem e estão aí para serem pensadas e repensadas. Afinal, toda obra feita por um negro deveria ser analisada como algo político? Malcolm acredita que não; Marie, embora não dê sua opinião explícita a respeito, rebate que Angela Davis discordaria dele piamente.

Outro ponto levantado pelas personagens, por um breve momento, é o fato de Malcolm ter decidido filmar uma cena de seu filme com a atriz principal mostrando os seios, e eles até brincam que para muitos críticos pode parecer uma nudez desnecessária. Marie diz que não imaginava a cena daquela forma, e eles entram em uma breve discussão sobre como os pontos de vista podem diferir, porque se o mesmo filme fosse dirigido por uma mulher, talvez ele fosse feito de forma diferente. Em momento algum é dito que seria melhor se fosse de uma forma ou de outra, eles apenas apontam as diferenças. O personagem de Washington até mesmo argumenta que tudo depende, afinal, se ele filmasse Marie do jeito que ela estava naquele momento, deitada na cama com parte do corpo à mostra, seria sexualização ou era apenas o que ela vestia em uma sexta-feira à noite?

Dessa forma, Sam Levinson se utiliza de personagens negras para discutir questões de poder, raça e gênero, nunca no papel de ditar o que é ou deixa de ser racismo, mas no lugar de entender e interpretar os temas levantados. Afinal, não apenas aos negros cabe falar de raça, e não apenas às mulheres, de sexualização. Levinson mostra, seja através de seus discursos no filme ou dos profissionais escolhidos para atuar e compor a trilha sonora, por exemplo, que é possível dialogar sobre determinados assuntos sem tomar uma posição de ofensa, de modo que ele prova que genuinamente se importa — diferente das novelas da Globo, que muitas vezes se dizem abraçar as causas negras e, no fim, acabam por colocar as personagens apenas em papéis que as desprezam.

Em relação às atuações, tanto John David Washington quanto Zendaya se saem muito bem nos papéis de Malcolm e Marie, dando vida a um casal um tanto quanto destruído e que busca — não da melhor forma, mas ainda assim — se reconstruir. Por vezes, o casal pode parecer desconectado, como se não se conhecesse, e acredito que esse não seja um dos pontos negativos do filme, até porque é assim que eles se sentem, como se fossem estranhos. Em certa cena, Marie ainda diz que preza pelo mistério, ao passo em que Malcolm não se importa com isso. A ideia deles de o que seria um relacionamento ideal difere, obviamente, uma vez que eles são humanos; então, se torna natural vermos mais posições do Malcolm sobre todas as coisas, e da Marie, apenas questionamentos. Ainda assim, Zendaya dá um show de atuação em muitas cenas, seu monólogo final incluso, e acaba por se destacar mais do que Washington. Se há alguma crítica a fazer a eles é que, nos momentos de paixão ardente, poderiam ter tido um pouquinho mais não de química, mas de devoção.

Dessa maneira, Malcolm & Marie traz às telas o amor e a dor que há na relação do casal, como pequenas coisas podem se tornar algo tão grande. A briga dos dois, embora passível de crítica por sempre retornar ao mesmo ponto, se torna real pelo mesmo motivo, visto que enquanto um ponto ficar sem solução na vida de um casal, ele sempre vai voltar à tona, seja no mesmo dia, seja depois. Além disso, o fato de Marie enrolar quase o filme todo para chegar ao cerne da questão é ainda mais honesto, porque o mais difícil em uma briga dessas é a pessoa simplesmente falar tudo o que a incomoda. As reações de Malcolm e as respostas de Marie às investidas dele também mostram como as personagens criadas por Levinson não são meramente cenográficas, e sim a materialização do ser humano no cinema, com suas qualidades e seus muito defeitos, que se tornam ainda mais aparentes em meio a uma briga. Ninguém aqui é puramente santo e nem absolutamente escroto: eles são passíveis de falhas como todos nós.


Por fim, acredito que o preto e branco combinou muito com o estilo do longa —  afinal, em um mundo de cinema com cores, nenhum diretor escolhe tirar parte da atração visual por nada; pensar nesse filme colorido o faria ser totalmente diferente. Outro ponto acertado foi a trilha sonora, que condiz tanto com o cenário geral da narrativa quanto com as personagens em si. Labirint, responsável por essa parte da produção, fez ótimas escolhas, como Down And Out In New York City, de James Brown, e I Forgot To Be Your Lover, de William Bell, para dizer o mínimo. Todo o conjunto de atuações, fotografia e trilha sonora se encaixaram perfeitamente nos enquadramentos escolhidos por Levinson para contar essa história, provando para os que ainda não conheciam o seu trabalho o quão bom ele é como diretor.

Embora esse não seja um filme perfeito, acredito que ele faz escolhas muito bem acertadas e não foge de sua proposta — segundo a sinopse, mostrar um casal em crise ao longo de uma noite. Dentro disso, o longa se mostra muito bem-estruturado e tem o potencial de encantar aos que gostam desse tipo de narrativa. Com personagens reais e uma trama verdadeira, a obra de Sam Levinson abre margem para discussão sobre identidade, cinema e principalmente relacionamentos. Malcolm & Marie é a expressão “take for granted”¹ em forma de filme, e vem para nos mostrar que, às vezes, tudo o que precisamos fazer é agradecer.

¹Take for granted significa, ao pé da letra, “tomar por garantido”. A expressão em inglês é usada quando alguém não está considerando algo ou alguém o suficiente, como se, pelo hábito, tivesse se esquecido de valorizar a existência do mesmo.

Título Original: Malcolm & Marie

Direção: Sam Levinson

Duração: 106 minutos

Elenco: John David Washington, Zendaya.

Sinopse: Malcolm & Marie é escrito e dirigido por Sam Levinson, o criador de Euphoria. Ambientado em apenas uma noite, o filme acompanha as conversas e tensões crescentes de um casal formado por um cineasta em ascensão (John David Washington) e sua namorada (Zendaya).

Trailer:

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