Community: Um Guia Básico para a Comédia de Dan Harmon

A comédia televisiva, além de ser um dos objetos mais consumidos pelos entusiastas da cultura pop, talvez seja o gênero mais mutável entre as produções feitas para a TV. As séries de comédia atraem um público imenso desde os primórdios da televisão, já que humor é uma forma de lazer universal. E o formato acompanhou as mudanças sociais  e estruturais que aconteceram na esfera coletiva, então, assim como seu público foi sendo alterado com o passar dos anos, a comédia também. E o que torna a comédia tão atraente para o público é a acessibilidade que o gênero proporciona, pois séries cômicas são geralmente aprazíveis e tendem a deixar o telespectador confortável. 


Embora a comédia sempre tenha sido usada de uma forma ou de outra para trazer temas sociais para o mainstream, com o avanço temporal houve essa evolução nos gêneros televisivos e a comédia passou a se tornar cada vez mais complexa e explorar temáticas instigantes, ao invés de apenas contar histórias acolhedoras e dentro de um lugar comum. Não apenas nos temas em si, mas especialmente na abordagem.

Nos anos 90, Seinfeld subverteu diversas convenções dos sitcoms e desenvolveu uma narrativa bem-sucedida com quatro protagonistas completamente amorais e egocêntricos. Enquanto a maioria das comédias até então tinha como personagens centrais indivíduos agradáveis e fáceis de apreciar, Seinfeld optou por outro caminho, centrando suas histórias em um grupo de pessoas completamente disfuncionais e desagradáveis, obrigando o público a se identificar com personagens que eles talvez desprezassem. 

É fácil perceber a diferença se comparar a obra de Larry David com a queridinha do público Friends. Enquanto que a comédia estrelado por Jennifer Aniston desenvolvia (ou pelo menos tentava desenvolver) seus personagens como pessoas divertidas, de bem com a vida e que tentavam aprender com seus erros, Seinfeld não tinha nenhuma preocupação em encaixar seus personagens dentro de um consenso de agradabilidade. Essa iniciativa de Seinfeld abriu espaço para outros sitcoms tomarem caminhos parecidos e também subverterem outras marcas registradas do gênero.

Já nos anos 2000 aconteceu mais uma importante mutação nos sitcoms, porém agora relacionada diretamente ao formato do gênero. Até os anos noventa as comédias para TV eram em sua grande maioria de câmera múltipla, ou seja, gravadas com várias câmeras posicionadas em ângulos diferentes dentro de um cenário que imitava o teatro, incluindo muitas vezes uma platéia ao vivo. Porém a partir dos anos 2000 esse modelo foi se tornando cada vez menos recorrente, assim abrindo espaço para outros formatos. 


Os sitcom de câmera única, um padrão que se assemelhava mais as produções cinematográficas já que dava mais liberdade artística na criação dos planos, passou a tomar conta das produções cômicas e se provou um modelo de sucesso agradando ao público. Outra característica que ficou para trás com essa mudança foi a claque, aquelas risadas (e outras reações) artificiais que são utilizadas para marcar as piadas na série. Seriados como Malcolm in the Middle, Scrubs e The Bernie Mac Show foram pioneiros ao abandonar a trilha de risadas e se aprofundar em outras técnicas que o formato de câmera múltipla não permitia.

Community teve um caminho similar a essas séries que a antecederam. Todas essas mudanças que ocorrem no gênero foram essenciais para que Dan Harmon tivesse o veículo perfeito para explorar seu humor inconvencional. Claro que o roteirista não revolucionou o gênero, mas seu texto aguçado e autêntico trouxe algo incomum para as comédias televisivas, mostrando que era possível ir além de certos limites e desenvolver uma intertextualidade entre os gêneros audiovisuais. 


A comédia que Community apresentava ia além da sátira ou da paródia e fazia realmente quase um estudo da funcionalidade desse gêneros. Episódios como Modern Warfare ou Epidemiology que exploram uma variedade de gêneros do audiovisual para extrair o máximo de comicidade de seu texto mostram a versatilidade da série. O sitcom faz referência a várias outras obras audiovisuais para criar um produto completamente novo e diferente do que estava sendo criado naquele momento.

A construção dos personagens de Community também reflete a subversividade da série. Inicialmente seus personagens são apresentados dentro de caixinhas previsíveis, mas ao decorrer dos episódios o texto da série vai explorando as complexidades dos seus protagonistas e desconstruindo os clichês tão conhecidos de outros seriados que antecederam a criação de Harmon. Embora seus personagens não sejam particularmente desagradáveis como é o caso de Seinfeld, eles não se encaixam nos moldes tradicionais das séries de comédia. Community traz certas referências em várias oportunidades, fazendo alusão as dinâmicas mais tradicionais das produções cômicas. 


Em um determinado episódio da primeira temporada Abed menciona que a dinâmica entre Jeff e Britta se assemelha a Ross e Rachel, exceto que os dois não tem a mesma química que os personagens de Friends. Esse exemplo do casal que leva várias temporadas para finalmente ficar junto é um dos tropes (moldes narrativos que se repetem em determinados gêneros) que Community desconstrói ao decorrer de suas 6 temporadas . Jeff e Britta são inicialmente colocados dentro desse molde, mas a cada episódio fica claro que os dois estão longe de se encaixarem no estereótipo de casal apaixonado que terminará junto. E a série brinca com essas expectativas levando os personagens por um outro caminho. Algo parecido com o que Seinfeld fez com Jerry e Elaine, porém de maneira mais consciente, explorando esse trope enquanto um objeto recorrente dos sitcoms.

Dan Harmon faz uso da metalinguagem de um jeito inteligente e complexo, não apenas fazendo referências óbvias e previsíveis, mas explorando como seu texto pode trabalhar a linguagem autorreferencial e se aprofundar em certos tópicos para desenvolver um roteiro cômico sólido. Algo que ele consegue distender ainda mais eficientemente com o texto de Rick and Morty. Harmon se provou um talento em destaque no universo da comédia, sempre trazendo trabalhos aclamados para televisão.


Título Original: Community

Direção: Joe Russo, Anthony Russo e outros

Episódios: 110

Duração: 22 min aprox.

Sinopse: A série acompanha um grupo de alunos em uma faculdade comunitária vivendo situações inesperadas.

Elenco: Joel Mchale, Gillian Jacobs, Donald Glover, Danny Pudi, Allison Brie, Yvette Nicole Brown, Ken Jeong, Jim Rash e Chevy Chase.

TRAILER:


Community é uma das melhores comédias de todos os tempos e tá na Netflix! Não percam!

Deixe uma resposta