Os Órfãos (2020, de Floria Sigismondi)

“E se não pudermos confiar no narrador da história porque ele está mentindo intencionalmente ou porque sua percepção de realidade está distorcida?”. É impossível ler essa nota de produção sem recordar minimamente da subjetividade corrompida de Bentinho, em Dom Casmurro, da obra-prima do diretor Martin Scorsese, Ilha do Medo ou até mesmo do longa protagonizado por Nicole Kidman, Os Outros.

Fazer uso da narração em primeira pessoa é um recurso excelente para gerar empatia maior com a personagem e, porquanto, envolver por completo o leitor em sua história. O mesmo acontece com o cinema, valendo-se de não entregar nada mais ao espectador do que aquilo que o protagonista tem conhecimento. Em Os Órfãos não é diferente. Baseado na obra de Henry James, A Volta do Parafuso (1898), — que tornou-se um modelo de terror psicológico e foi, inclusive, adaptada para o cinema em 1961 com o filme Os Inocentes — o longa de Floria Sigismondi apresenta muitas semelhanças com o folhetim, divergindo em pequenos detalhes, como o fato de a protagonista, no filme, ter um nome.


Kate, vivida por Mackenzie Davis, é uma jovem professora contratada para lecionar à pequena Flora (Broolkynn Prince) em uma mansão afastada. Junto com a menina mora a governanta, Sra. Grose (Barbara Marten), que toma conta da família desde que o pai da menina tinha sua idade. Com uma fotografia e direção de arte cada vez mais soturnas logo de início, a trama vai transformando a protagonista de dentro para fora em alguém perturbado e à beira da loucura. E, colaborando para esse arco dramático da protagonista, há a volta do irmão mais velho de Flora, Miles (Finn Wolfhard),  apesar de a atuação do ator passar longe de ser ruim, Finn parece ter se conectado em um nível mais profundo com seus personagens em Stranger Things e IT – A Coisa — um garoto de personalidade dúbia, que claramente perturba e desestabiliza ainda mais a personagem de Mackenzie, que permanece no local apenas por ter prometido à garota que não a abandonaria como ela própria foi abandonada pelo pai.

É possível enxergar o porquê de algumas resenhas criticarem tão pesadamente o filme se analisarmos apenas a superfície do que este entrega: uma mansão absurdamente grande, como diversas tramas trabalhadas no terror, com evidências de atividades sobrenaturais; alguns jump scares, eventos misteriosos e personagens secundários de caráter duvidoso. Uma compilação de clichês cinematográficos do gênero, certo? Mas será que não tem algo a mais além dessa leitura?


Dizer que o filme limita-se aos elementos citados acima é rejeitar completamente qualquer possibilidade de uma representação metafórica de temas muito mais relevantes do que alguns fantasmas em uma casa. Muito do incômodo do público com o longa parece se dar, em realidade, ao fato de as informações não virem completamente “mastigadas” e exigir do espectador uma reflexão acerca das possíveis vertentes interpretativas. A ideia de Os Órfãos, tal qual foi a do livro, há mais de cem anos, é oferecer justamente um final que propõe a participação de quem está acompanhando a narrativa. Não é, de modo algum, para ser uma obra em que, ao final, todos saem assustados, mas já pensando no que fazer a seguir. 

Chega a ser, inclusive, interessante perceber que o segredo do terror é mexer com nosso medo mais primitivo e gritante — o medo do desconhecido — e o filme justamente incomodar por não dar uma resposta pronta e fechada para todas as questões que levanta, deixando a cargo do público significar aquilo que viu e vivenciou ao longo da trama. É o desconhecido representado não apenas pelos espíritos ou o fato de não sabermos ao certo o que está acontecendo com a protagonista, mas também na própria forma estrutural da narrativa. O que é real, o que de fato aconteceu? Foi imaginação ou não? As crianças eram atormentadas pelos espíritos também? A resposta desconhecida para o que queremos saber incomoda e assusta. Sermos levados à questionar tudo que achávamos que sabíamos gera uma insegurança que nem todos sabem lidar de forma tranquila.


O próprio fato de o livro ser tão aberto à interpretações é um dos motivos listados pela intérprete de Kate que possibilita novas adaptações. Algo que ela ainda coloca é o que torna a história tão contemporânea: sua subjetividade. E a narrativa como um todo é interpretada, segundo ela, diferentemente, dependendo da geração. No entanto, eu iria mais além e diria que depende da experiência de vida de cada um. Prova disso é a inabilidade crescente no mundo atual de se sentir frustrado, de não ser dada facilmente alguma informação desejada. 

Para olhares mais atentos há pistas a todo momento, seja em falas, em pequenos momentos ou até mesmo no título. Pegando o significado da expressão em inglês que dá nome ao livro, trata-se de uma ação que piora consideravelmente algo ou uma situação a ponto de levá-la ao limite. Ao se considerar o nome original do filme, ele transmite uma ideia de “giro”, “virada” ou ainda “desvio”. Mas o que tudo isso significa?

ATENÇÃO: A PARTIR DE AGORA O TEXTO PODE APRESENTAR SPOILERS

É difícil não perceber a mudança de comportamento de Miles, oscilando sempre entre gentil e agressivo; traço da personalidade considerado pela governanta como influência do antigo professor de equitação do garoto, Quint, visto que o garoto era dócil e tranquilo. Já com Kate na casa, ele parece observá-la dormindo, tocar em seu rosto e quase provocá-la de modo a deixar seus próprios sentimentos em relação a ela dúbios. 

Em uma das noites horripilantes da moça, que vão lentamente deteriorando seu estado mental, ela pode ver e sentir uma mão claramente masculina andando por seu corpo sem qualquer pudor. E não muito depois, descobre que a antiga babá, Jessel, fora assediada e abusada sexualmente por Quint no quarto dos antigos patrões — que, curiosamente, não sabemos muito sobre eles. Seus pesadelos constantes com Miles, a visão da mão a tocando indesejadamente e suas descobertas podem abrir uma possível interpretação de que, na realidade, a abusada foi ela própria — quem mais notou a terrível semelhança entre Jessel e Kate? — que, não sabendo lidar com tamanho trauma, perdeu a sanidade. Nessa leitura, os fantasmas seriam uma representação para o fantasma da própria violência sofrida por ela, que não consegue esquecer e parar de reviver e lembrar.

Sob essa ótica, faria ainda mais sentido a frase de Miles para ela no lago,  de que “ninguém deveria sofrer tanto”, bem quanto a frase de Flora no início — ao apresentar o labirinto para Kate — ao lhe dizer que muitas vezes as pessoas não conseguem sair de lá. Que labirinto pode ser mais perigoso do que nossa poderosa e complexa mente? Quando a moça tenta, por fim, escapar da mansão e de tudo que a assombra, pode significar uma tentativa de deixar para trás justamente toda essa dor que a corrói. 

Isso explicaria a cena que se segue, de Miles dizendo que ela é tão quebrada quanto a boneca que a babá derrubou, e que não vê fantasma nenhum. O fato de a governanta falar para Kate parar de contar histórias corroboraria com essa versão, dando margem para pensarmos que o que tanto a assustou ao olhar para a mãe no final tenha sido o fato de ter visto a si mesma. Ela poderia ser a órfã que tanto projetou na figura de Miles e Flora, e a pessoa de fato com problemas psicológicos e internada. Explicaria pontas aparentemente soltas da narrativa e apresentaria um sentido mais profundo, repleto de crítica, para uma história sobre tudo, menos mansões e fantasmas pura e simplesmente.

Talvez apenas um aspecto que poderia ser mais trabalhado e retomado do folhetim é a relação mais de proteção do que antagonismo dela para com as crianças, mas se tudo for uma projeção dela, faria sentido a relação de dualidade entre o carinho por Flora e a rejeição e medo que sente por Miles. 





Título Original: The Turning

Direção: Floria Sigismondi

Duração: 94 minutos

Elenco: Mackenzie Davis, Finn Wolfhard Brooklynn Prince, Barbara Marten, Denna Thomsen, Joely Richardson, Niall Greig Fulton e Mark Huberman

Sinopse:recém-chegada babá Kate é encarregada de cuidar de dois órfãos misteriosos, Flora e Miles. Rapidamente, ela descobre que tanto as crianças quanto a casa escondem segredos obscuros e as coisas podem não ser como aparentam ser. (Classificação indicativa: 14 anos)

Trailer:




E você, gostou do filme? O que achou do final? Qual sua teoria? Gostou da nossa? Deixa sua resposta aqui embaixo nos comentários! 😱


Deixe uma resposta