Crítica do filme: Bem-Vindo à Marly-Gomont (2016, de Julien Rambaldi)


      Um daqueles “achados” na Netflix, Bem-Vindo a Marly-Gomont é um filme que vale a pena e que está disponível no catálogo. É um longa-metragem baseado numa história real, e isso deixa a narrativa ainda mais intrigante e apaixonante. 

      O filme começa em Lille, e se passa em 1975. Seyolo, o nosso protagonista, é do Zaire (hoje República Democrática do Congo) e acaba de se formar em medicina. Ele se dedicou muito para se formar nessa profissão, e queria facilitar a vida de seus filhos, para que conseguissem ter acesso a uma vida com mais oportunidades, que ele não teve de forma fácil. Então acabou por conhecer o prefeito de uma cidadezinha chamada Marly-Gomont, que procurava convencer algum médico a ir morar lá, já que não havia nenhum.
     O prefeito, no entanto, reluta em aceitar o pedido de Seyolo, que está de braços abertos para a oportunidade. Ele vai percebendo, ao longo da conversa, que o prefeito tem problemas com o fato dele ser negro. O homem questiona a veracidade de seu diploma, que é tão válido quanto dos outros médicos franceses. Seyolo implora pela chance de morar na França, e o prefeito lhe avisa: “Não é a França que você imagina. É a área rural. É lamacento, só chove, é muito frio e nada acontece”. 

     O homem ainda o previne a respeito dos cidadãos: “Nunca viram uma pessoa negra”. Ao que Seyolo responde que então essa é a chance deles. 

     Quando ele fala da oportunidade que conseguiu para a mulher, através de uma ligação, ela entende que morarão em Paris, enquanto ele explica milhões de vezes que é numa pequena cidade ao norte de lá. Portanto, quando chegam à Marly-Gomont, a frustração é grande, e a esposa se irrita. 

      Há uma cena em que um vizinho espia pela janela e vê o prefeito mostrando a cidade para a família, e ele comenta com a mulher que pela primeira vez está vendo pessoas negras por lá. Na verdade não sei o que é pior, o jeito com o qual o homem profere as palavras, que parece um desdém, desprezo e claro, preconceito, ou se o fato da mulher sequer ter acreditado no marido, e debocha dele rindo enquanto ela comenta que é impossível e ele é um imbecil. Não sei o que é mais preocupante e grave em toda essa situação. 

        É um filme que me surpreendeu com seus enquadramentos lindos e bem pensados. Esteticamente milimetrados e com alguns movimentos de câmera reveladores. Uma decupagem bem escolhida dá gosto, né? E este filme também prova que não é necessário ter uma imagem muito contrastada e nem uma luz super dura e recortada para ter uma fotografia bonita e bem desenhada. 

       Só o que não gosto tanto é da cena em que as crianças são rejeitadas por outras no primeiro dia de escola, porque achei uma cena altamente didática, sendo que poderia ser muito mais impactante se roteiro e direção tivessem sido mais inteligentes e criativos. E poderiam ter dado uma solução para a cena de forma muito mais sugestiva, não tão simplista e caricata. Outra coisa que não gostei tanto é que, apesar de adorar a personagem da esposa de Seyolo, às vezes me parece haver exagero nas suas ações, e pode ser que menos seja mais, porque muitas vezes suas expressões e reações ficam muito caricatas. Ficam fora do tom dos outros personagens. 

    Falando especificamente sobre nosso protagonista agora, Seyolo é um homem extremamente batalhador, estudioso, esforçado, educado, e otimista. Ele tenta se encaixar no que os cidadãos da cidadezinha consideram “normal”. E faz isso porque quer que sua família consiga se adaptar ao local, e que façam contato por lá, criem amizades e tenham uma vida social, além de conquistar a confiança de seus pacientes, claro. 

     Acho louvável Seyolo tentar ser diplomático e querer se adaptar à nova rotina, costumes e tudo que tange àquele novo lugar, porque ele pretende facilitar o ingresso dos filhos na escola, e claro, a aceitação da família como um todo. Mas também é preocupante o afastamento que ele faz de sua cultura para tentar ser aceito por outra. E por mais que se esforce, o doutor e sua família são rejeitados 90% do filme. O que significa que talvez tentar se assemelhar ao outro para tentar pertencer a um meio não seja garantia de nada, e nem saudável. Talvez o melhor dos dois mundos seja o equilíbrio. Mas tampouco a esposa está à vontade com a nova vida (o que é compreensível devida à falta de hospitalidade), e nem o novo grupo social que comanda o local se faz aberto para aceitá-los. Seyolo, então, fica dividido. E fica difícil tentar equilibrar tudo isso sozinho. Não que justifique, mas muitas vezes ele acaba por “engolir sapos” na sua rotina, e depois se estressa em casa, com sua família, por coisas não tão alarmantes assim. 

      Gosto do fato de que a esposa do doutor é decidida e de personalidade forte. Apesar de ter sonhado em morar em Paris, ela não acha “o máximo” a cidadezinha e nem aquelas pessoas só porque são francesas. É legal que ela não os coloca num pedestal, até porque, em termos de acesso a algumas coisas, eles estavam muito melhor lá do que na zona rural na França, numa cidadezinha que não havia muita coisa. 

     A personagem, além de tudo, protagoniza algumas das melhores cenas do filme como, por exemplo, o momento em que chegam à Marly-Gomont. Que cena imperdível e engraçada! Aquela mulher é, muitas vezes, o alívio cômico do filme, mas não o único, já que trata-se de uma espécie de drama com inúmeros momentos felizes e divertidos. Um filme que, apesar de tratar de coisas sérias como o preconceito e como este se manifesta, não deixa de nos fazer sorrir em cenas bonitas, delicadas e divertidas. Consegue ter leveza e equilíbrio de todas essas questões ao longo da narrativa, além de provocar reflexões, pois um filme não necessariamente precisa ser só melancólico e nem cult para promover uma filosofia, ao contrário do que muitos acreditam. 

     Como se já não bastasse todos os problemas que essa família se envolve, infelizmente é somado a tudo isso a droga da política, que se esta nasceu com o intuito de ajudar e organizar nossa vida, relações sociais, econômicas e etc, hoje sabemos que isso dificilmente se dá na prática, porque a ideologia muitas vezes passa longe do real objetivo dos políticos, que é simplesmente se manter no poder e nunca abrir mão de seus privilégios, independente de partido. E isso aparece no filme. Há uma eleição para decidir quem será o novo prefeito, e tem gente que segue as dicas de Maquiavel, não medindo esforços para tal e, isso acaba afetando quem não tem nada com isso, e quem não tem nenhum interesse nesta área como, por exemplo, a nossa família protagonista. 

    É um filme que emociona e promove reflexões, pode ser visto por todas as idades, além de promover o girl power, o incentivo de meninas se arriscarem fazendo o que gostam sem se importar com o que os demais irão falar. Isso porque a filha do doutor sempre gostou de jogar futebol, mas com essa nova vida na França, ele a proibiu, pois acreditava que era necessário que ambos seus filhos se concentrassem apenas nos livros, pois segundo ele este era o único caminho de “ganhar a vida”. E apesar de ser uma pessoa muito doce, Seyolo ficava muito incisivo ao tocar nesse assunto. Claro que, com a trajetória dura de vida que teve, ele claramente não conseguia ter outra perspectiva que não essa. E dá para entender a preocupação de, de repente, a filha escolher a carreira de futebol, que hoje já não é fácil porque é “um em um milhão que consegue”, agora imagine na época a aceitação de mulheres jogando futebol como era mais questionada do que hoje, principalmente para uma mulher negra? 

      Deve ser sempre preocupante o futuro dos filhos para os pais, ainda mais quando esses têm inclinações ou talento para carreiras não tradicionais como “jogador de futebol”, “cineasta” e por aí vai. Então é compreensível a opinião de Seyolo, que mudou-se de país para dar mais oportunidade aos filhos, e não queria que esses desperdiçassem a chance de ter uma educação de ponta e uma vida com garantia de estabilidade financeira. Mas ele vai descobrir, mais tarde, que a vida tem muitos caminhos, e que cada um tem uma aptidão. Se debruçar sobre os livros é algo que forma um indivíduo, sem dúvidas, mas talvez não só isso. 
     E ver uma garota jogando futebol em meio a todos os outros moleques foi libertador. Somente estando no campo ela pode mostrar ao seu pai o quão incertos, inexatos e flutuantes podem ser os limites pré-definidos pela sociedade como um todo, tanto para ele ser um médico quanto para sua filha jogar um simples futebol na escola. Que amarras invisíveis são essas que nos prendem? Têm elas algum fundamento justificável? Isso é admirável no filme, pois fala de preconceitos em inúmeras camadas, e como é necessário que nos dispamos deles.


Título Original: Bienvenue à Marly-Gomont

Direção: Julien Rambaldi

Duração: 94 minutos

Elenco: Marc Zinga, Aissa Maiga, Bayron Lebli (…) 

Sinopse: Seyolo é um médico que se muda para a França com sua família esperando dar uma vida melhor para eles, mas ser aceito numa cidade racista não vai ser muito fácil. Eles são os primeiro negros que moram na cidadezinha rural de Marli-Gomont. 
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