Crítica: Aquarius (2016, de Kleber Mendonça Filho)

As últimas semanas tem sido de altos e baixos para o Cinema Brasileiro. Por um lado, existem os empenhos de um governo que despreza o país que governa e cujos líderes há muito tempo embarcaram em uma cruzada contra qualquer tipo de arte crítica ou que almeje alguma profundidade. Um dia, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) anuncia uma reunião com uma figura que é, no mínimo, curiosa. Algum tempo depois, a mesma agência suspende os repasses para o setor audiovisual. Quase ao mesmo tempo, duas produções brasileiras são contempladas com a indicação à Palma de Ouro em Cannes – Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e O Traidor, de Marco Bellocchio. Em meio à tanta incerteza, nos cabe revisitar a obra fenomenal que é Aquarius e refletir sobre um questionamento: o que muda na percepção de uma obra com um tom explicitamente político em um cenário extremamente turbulento, três anos depois?

Aquarius foi uma obra instrumental no desenvolvimento de meu olhar sobre o cinema como um todo, mas ainda de forma mais impactante na forma como percebo o Cinema Brasileiro. Parece repetitivo atribuir os mesmos elogios de todas as outras críticas que falaram sobre o filme em 2016, mas sinto certa necessidade em iniciar essa crítica fazendo isso: Aquarius mistura perfeitamente um senso visual fascinante com um roteiro muitíssimo bem construído e uma atuação sublime de Sônia Braga.

A obra funciona exatamente porque retrata o Brasil de uma forma que evita um patriotismo vazio na medida em que propõe uma reflexão sobre as contradições e problemas do país. Sim, Recife está lá, com suas praias e os sotaques de seus moradores, mas o filme usa tudo isso para abordar temas que se equilibram entre as fundações complexas da sociedade brasileira e a invenção cuidadosa de um roteiro e uma história que contextualizam cada ação de seus personagens. 


A maior prova de que Kleber Mendonça Filho executa esse posicionamento estratégico de uma personagem em um âmbito e um momento específico não só da história de Recife e do Brasil, mas em sua própria jornada pessoal, é na simplicidade da trama: o embate entre uma senhora que luta para preservar o prédio em que mora – o Edifício Aquarius – e uma construtora cujo objetivo é transformar o local em um condomínio de luxo. Interpretando a protagonista Clara, Sônia Braga devora o prato que o roteiro lhe oferece, dominando cada cena com um olhar pragmático, mas sensível. Ao longo de suas falas, percebemos nuances de delicadeza e de raiva, de estoicidade e de cansaço, de forma que nas duas horas e meia que passamos com ela há um intimismo tão profundo que quase se inverte conforme nos identificamos com Clara não por suas especificidades, mas pela forma como a apresentação lenta e deliberada dos detalhes de sua vida refletem de forma tão bem construída sentimentos gerais, como uma atitude frente a adversidades ou a capacidade de asssociar experiências passadas com objetos do dia a dia.

É realmente difícil pensar em apenas um momento para ressaltar no meio de tanta intensidade – especialmente quando o roteiro consegue extrair o máximo de cada situação que cria. Como não se sentir quase constrangido ao ver a forma como a discussão entre Clara e sua filha (Maeve Jinkings) evolui do tom de uma preocupação com segurança e bem estar para uma revelação de mágoas e ressentimentos que nunca se vão, mas apenas permanecem pairando, esperando um momento para surgir? O filme é esperto ao decidir tratar a ação da construtora como um ponto inicial para vermos uma protagonista construída de forma excelente reagir, tomar decisões e expor um conflito que é, essencialmente, entre uma mulher e a noção de que o local em que ela vive e os significados que ela ali percebe não possuem valor algum além dos que ela mesma atribuiu a eles, através de suas memórias e experiências.


A forma física do conflito entre a construtora e Clara se dá em Diego (Humberto Carrão). Kleber Mendonça Filho toma uma decisão fascinante com relação a não caracterizar o personagem em contrapartida à forma como trata Clara e o Edifício Aquarius. Em uma primeira análise, a escolha de representar Diego de forma genérica serve para ressaltar o já mencionado alvo mais abstrato no que a trama realmente pretende apontar como conflito. Quando consideramos que tanto o Edifício quanto Clara são repletos de símbolos e significados, a escolha de não construir Diego o trata da mesma forma que ele trata o prédio: como se ele não estivesse realmente lá. Diego vê o Edifício Aquarius como algo em seu caminho e que deve ser substituído por uma versão mais nova e mais lucrativa. O roteiro caracteriza Diego como alguém que poderia facilmente ser substituído por qualquer outro rapaz branco e que recém retornou dos EUA com um diploma em administração para trabalhar em uma empresa que é, obviamente, de sua família. 
Existem incontáveis interpretações para outros incontáveis momentos fantásticos da obra, mas é hora de respondermos ao questionamento apresentado no primeiro parágrafo: como a percepção de Aquarius no contexto político de 2016 é diferente da percepção em 2019? O que mais percebo é uma mudança em como alguns momentos soam – algo que o próprio diretor comenta ao responder se haveria um protesto na estreia de Bacurau como o da estreia de Aquarius:

“A diferença é que, em 2016, quisemos informar ao mundo que o rito democrático não estava sendo cumprido no Brasil. Hoje, por outro lado, o mundo tem pleno conhecimento (do que está acontecendo no país). Nosso protesto é apresentar um filme foda sobre o Brasil e exibi-lo em Cannes.”

Nesse sentido, assistir Aquarius em 2019 toma uma proporção agridoce conforme lembramos de outro momento e outras preocupações. O rush de ver Clara “dizendo as verdades” para Diego ainda existe, mas agora é outra fala que parece refletir nossos tempos, de forma muitíssimo mais amarga. Durante o filme inteiro, Diego torna seu desrespeito pela memória do Edifício Aquarius explícito através do ato de constantemente se referir ao mesmo como se ele não existisse mais e, antes da explosão de Clara, comenta:

“Eu confesso que eu entro nesse lugar e eu nem vejo mais esse prédio.”

É apenas um pulo para relacionarmos essa fala com a declaração de Jair Bolsonaro sobre a execução de um músico negro pelo exército há algumas semanas:

“O Exército não matou ninguém, não. O Exército é do povo e não pode acusar o povo de ser assassino, não. Houve um incidente, uma morte.”

Tanto Diego quanto Bolsonaro buscam moldar a realidade através de suas palavras, sem perceber que elas apenas reforçam o que é real: o prédio não importa para Diego e a integridade das pessoas – em particular pobres e negras – não importam para Bolsonaro para além do projeto específico e calculado de aplicar um gigantesco CTRL + Z em qualquer progresso social que o Brasil tenha feito nas últimas décadas – projeto que sempre existiu, mas agora se vê mais institucionalizado do que nunca. 
Se em 2016 parecia possível se permitir falar de Aquarius sem entrar no mérito da política que o cercava, essa não é uma opção que vejo como viável ou minimamente sensata. Ao honrar a memória e os significados que cada um de nós encontramos em nossas vidas, Aquarius existe como uma obra que – assim como qualquer outra obra produzida, independente de esse ser seu objetivo ou não – reflete o momento político em que foi feita. Seu mérito final é, portanto, abraçar essa característica de uma forma que a eleva para além de seus feitos técnicos e a aponta como uma verdadeira inspiração para qualquer fã do Cinema Brasileiro.

Título Original: Aquarius


Direção: Kleber Mendonça Filho

Duração: 145 minutos 

Elenco: Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings e Irandhir Santos.

Sinopse: Clara, 65 anos de idade, é uma escritora e crítica de música aposentada. Ela é viúva, mãe de três filhos adultos, e moradora de um apartamento repleto de livros e discos no Bairro de Boa Viagem, num edifício chamado Aquarius. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.

Trailer:
E você, qual é sua relação com o Cinema Brasileiro? Tem algum diretor nacional que você goste muito? Comente aqui para conversamos e trocarmos umas indicações!

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