Crítica: Dogville (2003, de Lars Von Trier)


Preciso
lembrá-los que esse texto é uma análise do filme, que muito me perturba e ao
mesmo tempo muito me agrada em assistir, caso você não tenha visto o filme
ou terminado, cuidado, há muitos spoilers
!

Dogville é uma obra ímpar do renomado diretor Lars von Trier, que aqui, faz o que sabe
de melhor, causar desconforto no telespectador. A princípio o filme causa certa
estranheza, já que o cenário lembra um teatro, apenas um lugar com linhas
riscadas ao chão delimitando o espaço. Não há paredes, janelas, nada. Apenas
uma sensação. A pacata cidade de pouquíssimos habitantes, chamada Dogville
sofre um choque quando, no meio da noite, é visitada por mafiosos, ao
amanhecer, em uma reunião, Tom (
Paul Bettany) conta o que viu e apresenta Grace
(Nicole Kidman) a todos, dizendo que ela pre
cisa se esconder ali. 

Com muita
discussão, a forasteira tem duas semanas para provar seu valor à cidade e por
fim, todos
votam para que ela fique. É interessante notar que, em um primeiro
momento, Grace se sente tão estranha na cidade, quanto nós mesmos ao vê-la. A narrativa
do filme causa um conforto na história, apesar de sentirmos que algo muito ruim
está para acontecer. Com o passar dos dias, Grace percebe que ali não é tão
ruim quanto ela pensava e começa a entender que conseguiu não só um lugar para
se esconder, mas amigos que gostam dela.


A
narrativa do filme
inclusive é dividida em 9 capítulos, onde o narrador nos dá
uma pequena prévia do que está para acontecer, mas de forma alguma isso estraga ou
chega a incomodar, pelo contrário, parece que instiga ainda mais a curiosidade
sobre o que está por vir. Com o passar dos dias, Grace se sente cada vez mais à
vontade com aquelas pessoas e o mesmo ocorre com os moradores, que aos poucos
parecem tomar liberdades com ela que antes, seriam impensáveis. 

Um
fato interessante é que, mesmo tendo aparecido na cidade por fugir de mafiosos,
ninguém está realmente preocupado com isso ou com o passado dela. Como se não
fosse um fator importante, hora ou outra alguém questiona se não devem entregá-la
a polícia, mas a maioria sempre vence e acabam deixando como está. Devemos
entender que o filme tem como pano de fundo a década de 30 nos Estados Unidos.
Época da Grande Depressão, pobreza e claro, gângsters
Como eu disse no começo
do texto, esse filme foge completamente dos padrões e mesmo sendo filmado como
uma apresentação teatral, tem muito a nos dizer. Podemos reparar que ao redor da cidade está
sempre muito escuro ou muito claro, mas nunca vimos nada além disso, como se
não houvesse horizontes a serem descobertos ou simplesmente nos mostra o quão
fundo vai a ignorância ou a comodidade daqueles cidadãos em não esperar mais
nada além de suas vidas ali. O que está lá fora não importa para eles, porque
na cidade, eles é que mandam, eles que vivem ali e tomam todas as decisões
importantes. Não há prefeito, polícia, hospital. Tudo de certa forma é feito
por eles e somente eles. Talvez isso faça-nos entender porque eles ficaram tão
receosos com alguém de fora e acaba fazendo muito mais sentido quando, não
alguns, mas todos acabam abusando de alguma forma de Grace. Para eles não
existiam consequências. 

Tom é o porta voz, ou pelo menos tenta ser, dessa cidadezinha, tentando fazê-los
ver além do óbvio, mas sempre é colocado em seu lugar pelos moradores. E isso
causa certa ansiedade e frustração nele, podemos perceber que seu único contato
com o sexo feminino é quando ele visita seu melhor amigo e ele por ventura, acaba
socializando com a irmã do mesmo. Não sei até em que ponto Liz
(Chloë Sevigny) se incomoda com isso ou se sente cortejada, já que é a única mulher jovem
do lugar até a chegada de Grace. Inclusive para Tom, Grace vem como uma
resposta ou pelo menos um caminho para tudo aquilo que ele tentava colocar na
cabeça das pessoas, que é necessário ajudarem uns aos outros e não pensar somente em
nossas necessidades. Apesar de acolhê-la, o sentimento de algo ruim prestes a
acontecer continua e parece crescer a cada minuto. 
Grace
é aceita na cidade e começa a ajudar todos, seus trabalhos são vistos com bons
olhos e ela parece finalmente ter se encaixado ali. Até que um belo dia, um
carro de polícia vem à cidade e coloca um cartaz da moça, lembrando-os que ela
é alguém a se temer ou no mínimo desconfiar.  

 

Ameaças
veladas que vão se
tornando pequenos abusos até virarem de fato extrema violência
física e psicológica. Grace percebe tudo isso chegando, e apesar de ver o fato
não faz nada para impedi-lo, porque ela precisa daquele esconderijo, nenhum
outro lugar é seguro para ela, então ela aceita o que lhe é obrigado a aceitar.
Nesse momento é que começamos a sentir um revirar no estômago e um grande pesar
pela personagem, que até então, não fez nada para merecer tamanha maldade dessas
pessoas. Maldade essa que assim como as ameaças, é velada
, escondida em
cor
dialidade e sorrisos amarelos, até o momento que pode finalmente mostrar
quem de fato eles eram, seres humanos mesquinhos, arrogantes e maldosos. Deem
um pouco de poder para uma pessoa e descubra quem ela realmente é. A parte que
mais incomoda em tudo isso é a falta das paredes ao redor, dando uma sábia
sensação que, tudo o que acontece dentro dessas casas e estabelecimentos é de
conhecimento geral e mesmo assim, ninguém se incomoda em ajudar, muito pelo
contrário. E sem surpresa alguma, começam a culpá-la pelos atos de terceiros, como
se ela não fosse a vítima nisso tudo.
 
Tom aparentemente é o único que mantém sua palavra e
não trai Grace ou tenta forçá-la a algo, atrás de uma “recompensa” por ter
deixado que ela ficasse na cidade. Ele era a voz da moralidade numa sociedade
imoral e isso o frustrava.
Seu trabalho nunca foi valorizado, cada vez
mais ela era empurrada a mais e mais serviços que antes, não seriam
necessários. Grace representa tantos elementos que não chega a ser difícil identificá-los:
é a mulher que precisa ser salva, o trabalhador que muito trabalha e pouco ganha, é a representação do machismo, da humilhação, da necessidade,
da discriminação, mas principalmente da sobrevivência. Ela nunca me pareceu frágil, a personagem
se demonstra séria nos mais diversos acontecimentos e sempre parece estar se
segurando para não fazer algo que fuja do personagem que todos conhecem na
cidade.

A
vingança de fato é um prato que se come frio. E assim como uma praga, Grace olha para a cidade apenas para destruí-la. Olho por olho e dente por dente.
Não me sinto mal em dizer que torci por isso e que me alegrou ver todas aquelas
pessoas sofrerem, inclusive as crianças,
  que no filme são simplesmente odiosas, refletem como um espelho a sociedade que conhecem e os próprios pais. 

A
conversa final que Grace tem com seu pai, falando sobre a natureza dos animais,
dentre eles, assassinos, estupradores e cães se encaixa perfeitamente como uma
analogia à Dogville. Segundo seu pai, perdoar repetidamente animais por seus
erros estimularia seu lado animal e eles nunca mais passariam a obedecer ninguém.
Sendo assim, e
le vê Grace fraca pois segundo ela, certas ações são tomadas em consequência dos acontecimentos que fogem de suas vontades, como: fome, falta de estudo ou dinheiro, como se de fato, houvesse uma
explicação para tudo. Mesmo depois de ter passado por tudo que seu pai descreve, ela ainda quer ser piedosa com aqueles que a fizeram sofrer. 
Me parece
muito mais uma questão filosófica/religiosa, nota-se que o discurso de Grace
muito se assemelha ao catolicismo, dar a outra face, ser piedosa pois eles não
entendem os próprios erros, como se Grace fosse a representação de Jesus e
talvez seu pai, do próprio mal, como a cobra que tentou Eva no Paraíso, dando
mais do que ela podia suportar naquele momento. Enquanto Grace tenta provar seu
lado, seu pai tenta mostrar que a piedade deve ser merecida, assim como as
transgressões devem ser sentenciadas. Apesar do discurso, Grace havia escolhido
permanecer em Dogville, pois seu sofrimento ali seria menor, mas agora, ela
parece entender que não há diferenças no sofrimento e muito menos em quem as inflige,
todos são iguais. 
 
Você pode lembrar-se de algumas histórias bíblicas como
Sodoma e Gomorra ou o próprio dilúvio, onde os seres humanos considerados maus
foram  expurgados do mundo para um bem maior. Aqui não é diferente. Grace
fina
lmente vê a cidade como ela é: feia, cheia de defeitos e maldade. E sendo
ela a única que pode livrar o mundo daquilo, ela resolve agir. E assim como em
Gomorra, o fogo chega mas em forma de tiros e combustível queimado, o castigo
para todos os pecados cometidos contra alguém que nunca fizera nada de mal para
eles, mas graças a eles, a tornaram nociva. O fim de Tom é igualmente
trágico, e
le também era como os moradores
a seu modo.
Afinal, não fazer nada é muito pior. 



Por fim, diria que Dogville reflete a sociedade que conhecemos, o bem e o mal. Você pode se aproveitar de situações, pode se aproveitar de outras pessoas em benefício próprio, pode fingir não ver algo acontecendo, pode até mesmo fazer de conta que não fez nada. Mas alguém sempre vê. Poderia me aprofundar mais em questões políticas mas acho necessário você tirar suas conclusões, então vá assistir ao filme! Espero que vocês gostem tanto quanto eu.

Título Original: Dogville
Direção: Lars Von Trier
Duração: 178 minutos
Elenco: Nicole Kidman, Anna Brobeck, Ben Gazzara, Bill Raymond, Blair Brown, Chloë Sevigny, Cleo King, Evelina Brinkemo, Evelina Lundqvist, Harriet Andersson, Helga Olofsson, James Caan, John Hurt, John Randolph Jones, Miles Purinton, Patricia Clarkson, Phillip Baker Hall, Stellan Skargard, Zeljko Ivanek  
Sinopse: Anos 30, Dogville, um lugarejo nas Montanhas Rochosas. Grace (Nicole
Kidman), uma bela desconhecida, aparece no lugar ao tentar fugir de
gângsters. Com o apoio de Tom Edison (Paul Bettany), o autodesignado
porta-voz da pequena comunidade, Grace é escondida pela pequena cidade
e, em troca, trabalhará para eles. Fica acertado que após duas semanas
ocorrerá uma votação para decidir se ela fica. Após este “período de
testes” Grace é aprovada por unanimidade, mas quando a procura por ela
se intensifica os moradores exigem algo mais em troca do risco de
escondê-la. É quando ela descobre de modo duro que nesta cidade a
bondade é algo bem relativo, pois Dogville começa a mostrar seus dentes.
No entanto Grace carrega um segredo, que pode ser muito perigoso para a
cidade.
Trailer:
 
 

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