Critica: Recife Frio (2009, de Kléber Mendonça Filho)

Em novembro de 2009, o curta-metragem que vamos tratar aqui, começou a projetar a figura de Kléber Mendonça Filho como um dos melhores cineastas contemporâneos brasileiros. Essa fama veio de curta-metragens espetaculares e muito elogiados mundo afora como Vinil Verde e Eletrodoméstica, e de um documentário que trata exatamente da visão que os cineastas e os críticos tem sobre o objeto “filme”, chamado Crítico. Em Recife Frio, o diretor nos apresenta uma ficção científica onde a região metropolitana de Recife está sem a luz do sol há quase um ano e quais são os impactos disso na sociedade pernambucana. 

Quase 10 anos depois, Kléber tem no currículo dois filmes muito importantes pra história da cinematografia brasileira, pelo jeito que seus filmes são filmados e principalmente por sua relevância social. Em O Som ao Redor, o cineasta discute, principalmente, a relação de opressão que existe nos diversos níveis entre patrões e empregados. E em Aquarius, discute sobre o velho e o novo, e o progresso destrutivo do capitalismo frente às tradições recifenses.

Aqui em Recife Frio, além de ser o projeto embrionário para seus dois longas de sucesso, é muito bem trabalhado o complexo de vira-lata, através do sentimento que o brasileiro, um povo de país tropical, tem com o frio. Pois, por vivermos num país quente, o frio, e as pessoas que vivem no frio, parecem mais exóticas, sofisticadas ou até mesmo evoluídas que as pessoas que vivem no calor.

Kléber Mendonça Filho, cria essa ficção que nos evidencia em sua superfície que o clima não causa qualquer mudança na estrutura social. Além de abordar outros subtemas nas camadas de seu curta.

Através de um falso-documentário de uma televisão argentina, acompanhamos o repórter Pablo Hundertwasser fazendo uma matéria sobre as mudanças que ocorreram nos sete meses na região metropolitana de Recife, deixando a cidade sem ver a luz do sol.

O repórter faz uma pequena introdução sobre a inexplicável mudança de temperatura na cidade, e depois começa uma série de entrevistas que busca comparar como era o Recife Quente em relação ao novo Recife Frio.

Para prender a atenção de quem assiste  à obra, o diretor utiliza das técnicas de corte surrealistas, que vem do cinema de Luis BuñuelUm Cão Andaluz, por exemplo, é uma clara referência ao desrespeitar a continuidade da fotografia e ao confundir propositalmente o mise en scene em que algumas sequências estão sendo gravadas, ou seja: quem assiste à obra, não consegue identificar exatamente onde se situa cada cena dentro da sequência, com personagens mudando de paisagem e de posição todo o tempo em relação um ao outro. Sendo assim, ao mesmo tempo que a técnica causa estranheza, ajuda a prender a atenção de quem assiste.

Outra artimanha que encontramos no curta-metragem é o uso de um humor muito sutil, através da qual o realizador encontra uma maneira muito assertiva de trazer algumas críticas ao Recife Real, como nos exemplos das fotos abaixo. 

A crítica social feita às relações de poder, trabalhadas à exaustão em O Som ao Redor, tem um flerte neste curta-metragem, quando nos são apresentados os Nogueira, família pernambucana de classe-alta.

Primeiro, pela própria câmera da reportagem que não busca a empregada da família, e perde um bom tempo ouvindo-os falar sobre as futilidades dos dramas que a família tem agora: para comprar o apartamento com o metro quadrado mais caro da cidade tiveram que gastar um bom dinheiro em Recife, e agora que decidiram se mudar, percebem que não conseguirão ter um lucro em cima dessa venda. Ou, o fato de ventar muito no local que eles compraram o tal apartamento, pois ele fica bem de frente para praia. 

Até chegar na sequência mais impactante do mocumentário, onde o filho da família Nogueira, tem que trocar de quarto com a empregada, pois o quarto designado à ela era até então feito para ser o mais quente da casa e agora  na atual condição climática de Recife é um artigo de luxo. Kléber embasa essa relação em “uma herança da escravidão, fantasma moderno da senzala”.  Neste momento os donos patrões da empregada Gleici, reconhecem que ela está mal por conta do frio do antigo quarto que fora tomado pelo filho do casal, mas ressaltam que ela está se sentindo um “peixe fora d’água” por estranhar viver num quarto que tem uma suíte. Note que aqui há uma escolha de palavra muito significativa, ao invés do casal dizer que a empregada “dorme” no quarto, o roteiro evidencia que ela “vive” em um único cômodo, pois, todos os outros cômodos da casa, seriam apenas seu local de trabalho.
 
Para finalizar, o repórter argentino, procura saber onde estão as pessoas de Recife, já que as ruas estão desertas por conta do frio. Após uma pequena investigação, ele descobre que quase todas estão frequentando, ainda mais, o shopping. Com essa conclusão, Kléber Mendonça Filho nos passa duas mensagens muito certeiras: a primeira é que em lugares onde há frio as pessoas tendem a procurar lugares fechados e impessoais de lazer, pois não encontram a alegria dos trópicos, sendo assim não há nada melhor para traduzir isso que um shopping center . Inclusive nesta parte, o curta mostra crianças brincando dentro de uma bolha na praça de recreação, uma clara alusão ao “benefício” que o frio apresenta. 
A segunda mensagem transmitida pelo diretor é a de que, mesmo com essa catástrofe climática, que prejudica os mais pobres e enraivece os muito ricos, a população média parece pouco se importar e apenas continua fazendo o que sempre faz. Que a paisagem recifense pouca diferença faz, mesmo que vá de um extremo para o outro, e que estar no frio, ou no calor, não traz ou tira nenhum tipo de sofisticação e não desperta para a realidade encoberta pelo senso-comum, como ele imagina.  

No epílogo, vemos uma cantora tradicional da região cantando uma ciranda, enquanto algumas pessoas dançam sua música. Durante a apresentação, um feixe de luz aparece perto deles, mostrando que ainda há esperança do sol voltar até a região. Com essa conclusão, podemos entender também, que a obra trata da “falsa sofisticação” trazida para Recife através de grandes obras arquitetônicas e shopping centers, e que tira a magia do lugar. Quando o povo se volta para suas tradições, ainda há uma esperança de reverter esse ode europeu dos grandes centros urbanos e trazer a característica do povo novamente em voga. 

Título Original: Recife Frio

Direção: Kléber Mendonça Filho

Duração: 25 Minutos

Elenco: Andrés Schaffer, Pinto e Patativa, Yannick Ollivier, Gleice Bernardo de França, Djanira Pessoa, Júlio Rocha, Pedro Bandeira, Rodrigo Rizzla e Lia de Itamaracá.

Sinopse: A região metropolitana de Recife, que já foi tropical, agora é fria, chuvosa e triste, depois de passar por uma desconhecida mudança climática.

Trailer:


Vocês sabiam que este é o curta-metragem brasileiro mais premiado dos últimos 30 anos? Já assistiu à essa bela obra do grande diretor Kléber Mendonça Filho? Deixem aí embaixo os seus comentários.

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