Suspiria e o Gozo Feminino

*Contém spoilers


Você já ouviu falar sobre Suspiria? Trata-se da nova produção do diretor Luca Guadagnino, uma reimaginação ao clássico de terror dirigido por Dario Argento em 1977. Sabe-se da história de conflitos entre obras originais e seus chamados remakes, seja relacionada a um filme ou a um livro antecessor, sempre se colocando um grande peso sobre a obra mais nova, tentando equipará-la à obra original. Mas, aqui, gostaria de propor que ambas as obras, pelo menos no caso deste filme, são visões completamente diferentes concebidas por cada diretor dentro de sua própria singularidade, tanto profissional – o que envolve suas habilidades e talento enquanto diretores de cinema – quanto pessoais, relacionados a sua própria subjetividade e imaginação que tiveram do roteiro.


A nível de curiosidade, ambos diretores de
Suspiria são italianos: Dario Argento, construiu sua carreira dirigindo
giallos [1]
de renome desde a década de 1970, sendo que seus filmes recorrentemente se
inspiram em temas típicos do gênero horror, mesclando fenômenos sobrenaturais
com investigação policial. Suspiria, lançado em 1977, é parte de uma trilogia
que também inclui os filmes Inferno, de 1980, e Mãe das Lágrimas, de 2007,
constituindo filmes sobre “As Três Mães”, isto é, um power trio de bruxas arcaicas que sobrevivem no mundo moderno e o
influenciam pelo caos, cada uma à sua forma. A premissa original para Suspiria
vem, na verdade, de uma colaboração entre Dario Argento e a atriz Daria
Nicolodi, baseada no livro de Thomas de Quincy, Suspiria De Profundis [2].
Já o seu conterrâneo, o diretor italiano Luca Guadagnino, é um pioneiro no
gênero de horror, premiado por sua direção de Me Chame pelo Seu Nome
em 2017,
sendo que, no último ano assumiu sua paixão por filmes de horror, resolvendo se
arriscar a mexer em um clássico
cult do gênero.


Pois bem, o que chama à atenção em Suspiria é que, apesar de explorar a questão do feminino (a dança, o corpo, o
gozo, o misterioso, o aterrorizante), é um filme dirigido por homens, tanto o
original de 1977, quanto a sua reimaginação de 2018. Mas este texto vai focar,
especificamente, na obra de Guadagnino, por compreender que esta aborda de
forma mais explícita os conceitos aos quais o texto quer se remeter. Diante
disso, tenha-se em mente que a história do cinema tem sido dominada pela representação
e pela retratação do desejo feminino e de relações entre mulheres pelo viés do
que um homem imagina que seja a realidade. 



O filme original, de Argento, é um pesadelo
alucinógeno construído em tons de neon, ao som da trilha sonora macabra
orquestrada pela banda instrumental italiana Goblin. Argento apresenta-nos à
academia de dança como um labirinto sinistro do qual não há saída possível,
apenas para dentro. Suzie Bannion, interpretada por Jessica Harper, é uma
frágil e inexperiente dançarina de
ballet cuja ingenuidade a torna presa fácil
para as intenções das forças sobrenaturais presentes na casa, que parecem sentir
nela uma potencial seguidora ou vítima. Diferente da obra de 2018, o filme de
Dario Argento possui a estrutura de um mistério, o suspense é sustentado pela
curiosidade do espectador, crescendo lentamente até chegar em um clímax de
cenas que revelam o segredo que circunda a história.



Estamos falando
(aviso de novo de spoilers!), impreterivelmente, sobre a questão
da bruxaria, algo que esteve no registro imaginário da humanidade por séculos,
desdobrando-se em inúmeras outras questões, que gostaria de abordar nesse
texto. Por isso, optei por analisar a obra de Luca Guadagnino, pois, contrária à
de Argento, já expõe desde o início que estamos lidando com uma manifestação de
magia negra praticada por um clã de bruxas. Pelo fato de não haver espaço para
este mistério, no lugar disso, o diretor busca flertar com a exploração e a
exposição dessa temática de várias formas, como, por exemplo: a convivência e
os laços de sororidade entre essas mulheres, o modo como a dança entra como
elemento catalisador do seu poder, o papel das alunas em toda a conjuntura e o
contexto social germânico da década de 1970, caótico e explosivo – ao contrário
do interior da Academia Tanz, sóbrio, controlado, mas igualmente intimidador.



O corpo feminino é aqui apresentado como
possuidor de uma força matriz que produz força na superfície e que reverbera
para os andares de baixo (as metáforas dos diferentes andares de uma casa como
representantes dos diferentes níveis de nossa mente, consciente e inconsciente,
não são novidade!), reforçando o poder de Helena Markos e dando prosseguimento
a todas as atividades obscuras que lá ocorrem. Não apenas o corpo, mas todos os
corpos de todas as mulheres ali presentes, em união, em movimento juntos,
realizam essa espécie de enfeitiçamento. A cena mais marcante que ilustra isso
é aquela em que Olga, personagem de Elena Fokina, se transforma violentamente
numa boneca
voodoo humana.
Certamente, uma das cenas mais memoráveis, não apenas por toda a absurdez e
angústia provocadas por todos os contorcionismos e brutal aniquilação de uma
anatomia humana, mas também pela trilha sonora fornecida por Thom Yorke, cuja
música nesta cena se chama
Olga’s Destruction, uma das trilhas mais belas e
assombrosas do filme, parece ter saído diretamente da Polônia dos anos 20, do
piano maldito de algum compositor suicida num domingo vazio. Quase tão pungente
quanto a trilha sonora original, composta pela banda italiana Goblin. 



O que isso diz sobre o corpo feminino? Um
corpo, historicamente flagelado, mutilado, costurado, e reprimido de todas as
formas possíveis. Aqui, é outra mulher que, de certa forma, “pune” a sua colega
(a personagem de Dakota Johnson, Suzie Bannion), algo que também podemos pensar
não estar tão distante da realidade. Pois, além de sofrer as consequências do
patriarcado, é necessário lidar com a internalização dessa estrutura na própria
psique da mulher, cujo efeito reverso pode ser ainda mais forte, atingindo a
todas que estão ao seu redor com igual intensidade e desejo de destruição.
Nessa reimaginação de Suspiria, Suzie Bannion (
ao contrário da personagem de Jessica Harper), é uma mulher que vem de um contexto de pobreza e rigidez moral mas que, ao entrar na academia, passa a
se empoderar de seu corpo e dos efeitos que ele pode provocar, através da
dança. Poderíamos pensar numa metáfora para o despertar da sexualidade.



Penso ser interessante analisar o modo como
o corpo feminino é mostrado aqui, visto que um dos elementos principais do
filme é a dança – que aqui nessa obra ganha muito mais destaque do que na obra
de Dario Argento – pois o movimento circular entre mulheres também é uma imagem
que remonta ao Sagrado Feminino, hoje uma filosofia assimilada pelo
capitalismo, mas, sobretudo, um arquétipo que conecta as mulheres às suas
ancestrais, uma possibilidade de se libertar de toda a mortificação e de toda a
repressão aplicada às mulheres ao longo da história da civilização. Logo, a
dança é mostrada como um pêndulo, tanto como um instrumento de libertação, para
aquelas que a performam bem, quanto tem um efeito que provoca punição e
submissão, para quem foge às suas normas.



Para Freud, as mulheres representam o
“continente negro”, no sentido de obscuro, desconhecido, inexplorado e
enigmático, já para Jacques Lacan, na releitura da obra freudiana, ao construir
os “grafos do desejo”, propõe a identidade sexual enquanto um posicionamento do
sujeito em relação ao falo (significante que circunscreve todos nós ao mundo da
linguagem). Logo, é possível se encontrar em uma posição masculina ou feminina,
dependendo de como estamos situados em relação ao nosso desejo e ao laço social
que perpassa nossas vivências. Na posição masculina, o gozo suporta e está
limitado pelo mundo simbólico, isto é, possui um representante fálico que é
completo e não deixa dúvidas ou enigmas; já o gozo da mulher está não-todo
inscrito no simbólico, quer dizer, uma parte do gozo das mulheres está regido
pela função fálica, mas outra parte está para além do falo: selvagem e
misterioso, não há palavras que possam abarcá-lo.





Nesse sentido, o gozo feminino,
historicamente, está ligado a experiências místicas ou que, de alguma forma, fogem
ao registro simbólico da linguagem, inexplicáveis, potentes. Não é à toa que as
mulheres consideradas bruxas ou feiticeiras sofreram toda a fúria masculina do
patriarcado, por encontrar gozo na sua autonomia, na relação com outras
mulheres e na coexistência harmoniosa com a natureza, prescindindo da função
masculina. É o que podemos pensar no caso de
Suspiria, afinal, um clã de bruxas
da Escola de Dança Tanz mostra um grupo de mulheres claramente exercendo uma
função fálica e obtendo gozo a partir disso, como é ilustrado pelas cenas nas
quais elas interagem com os personagens masculinos. Assim como também nos
apresenta ao mundo do mais além do gozo fálico: os rituais místicos, os sonhos,
os suspiros, a dança, tudo isso pertencente
uma lógica que escapa ao universo
das palavras e transborda no real, no dizível somente através da dança dos
corpos.


A posição masculina no filme demonstra
isso, pois, todos os homens no filme aparecem como figuras fracas e impotentes,
não importa quais seus esforços, perante o poder místico feminino, todos os
homens que aparecem são de alguma autoridade invocada pelo laço social: o
psiquiatra, muito reminiscente de Carl Gustav Jung (maravilhosamente
interpretado por Tilda Swinton), e os policiais que buscam Patrícia na Escola
Tanz, cuja única aparição os mostra nus e humilhados perante o grupo de bruxas,
completamente hipnotizados e vulneráveis. Todos eles falham em seus objetivos
racionais e pragmáticos de refrear o desconhecido. 



Os sonhos de Suzie nos mostram algumas das
sequências mais perturbadoras do filme, envolvendo sempre referências à
corporeidade e à imagem, mãos, torsos, sangue, cabelos e uma série de ideias
que evocam perturbação: rachaduras, texturas, movimento, cortes. Todas essas
imagens agregam à qualidade fantástica do filme. Além disso, a questão da
maternidade também tem um forte peso na direção da história, entra na mesma
lógica abordada acima, sendo ainda mais complexa a relação entre mãe e filha,
vez ou outra marcada por uma devastação sem precedentes, assim como as alunas
acabam sentindo, inconscientemente, após a cena do ritual.



Acredito que as possibilidades de análise e
interpretação de uma obra que traz fortes elementos oníricos e abstratos nunca
se esgote, como é o caso de
Suspiria, mas como há limitações de tempo e espaço,
nossa associação livre precisa ser interrompida. Sempre pode se iniciar
novamente a cada vez em que re-assistimos ao filme, sempre nos convidando
a uma
nova dança. 


Título Original: Suspiria

Direção: Luca Guadagnino

Duração: 152 minutos

Elenco: Dakota Johnson, Tilda Swinton, Mia Goth, Chlöe Grace Moretz, Jessica Harper, Ingrid Caven, Angela Winkler, Sylvie Testud.

Sinopse: Susie Bannion (Dakota Johnson), uma jovem bailarina americana, vai para a
prestigiada Markos Tanz Company, em Berlim. Ela chega assim que
Patricia (Chloë Grace Moretz) desaparece misteriosamente. Tendo um
progresso extraordinário, com a orientação de Madame Blanc (Tilda
Swinton), Susie acaba fazendo amizade com outra dançarina, Sara (Mia
Goth), que compartilha com ela todas suas suspeitas obscuras e
ameaçadoras.
Trailer: 

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[1]
Giallo – Palavra que vem do italiano, “amarelo”. Comumente utilizada
relacionada a um subgênero do horror, tanto no cinema quanto na literatura,
referindo-se aos livros publicados na Itália a partir de 1929, com capas
amarelas. No cinema, alcançou seu clímax nas décadas de 1960 a 1980, outros
diretores conterrâneos a Dario Argento com elementos similares em suas obras
são Mario Bava e Lucio Fulci.

[2]
Suspiria de Profundis – É um livro incompleto escrito pelo inglês Thomas De
Quincey, a tradução seria o equivalente a “Suspiros das Profundezas”, reunindo
histórias curtas com temática de horror psicológico.

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