Crítica: Climax (2019, de Gaspar Noe)

Escrito e dirigido por Gaspar Noe, famoso por sua total falta de pudor ao fazer cenas explícitas de violência física e psicológica,  Climax é a mais nova obra do diretor para chocar o público. Climax narra a história de um grupo de dançarinos urbanos que, nos anos 90, se isolam em um internato no interior da França, em meio às nevascas e colinas, para o ensaio final de sua apresentação. Na festa de encerramento, alguém joga ácido lisérgico (famigerado LSD) na sangria, drogando todos os membros do grupo sem consentimento destes. O inferno para uns e o céu para outros, a festa se transforma na manifestação mais instintiva do caos dentro de cada ser.

Nas próprias palavras do diretor, Climax possui duas partes, uma que pode ser comparada ao passeio em uma montanha russa, e a outra como um trem fantasma. Somos apresentados aos personagens na forma de depoimentos que passam em uma televisão, bem característica dos anos noventa, rodeada de livros e filmes. Conhecemos as ambições de cada um, seus limites éticos, suas preocupações, suas possibilidades e aventuras, ou o que querem que pensem deles. Interessante é dividir a atenção nessa cena para as obras ao redor da TV, já que são quase as referências bibliográficas que Garpar Noe usou. Repertório que vai desde Salo: Os 120 Dias de Sodoma e Suspiria aos livros do filósofo Emil Cioran (famoso por sua filosofia extremamente negativa sobre a real natureza humana). Os segredos e inspirações do diretor estão ali, devidamente citados, sem mistérios, preparando o público para o que está por vir.

Em seguida, somos levados ao ambiente do filme e surpreendidos ao ver todo o grupo antes apresentado já realizando a performance. O ritmo da música é contagiante, e os passos da coreografia mais ainda. É um espetáculo dentro do espetáculo, que dá vontade de participar, levantar da poltrona e dançar junto, ainda mais quando a trilha sonora conta com nomes de peso da “música eletrônica”, como a dupla francesa Daft Punk. Os movimentos são intensos e frenéticos, lindamente executados, justificando a escolha de todos os atores serem, primeiramente, dançarinos. Na realidade, com poucas exceções, grande parte do elenco estava estreando no mundo da atuação. Ou seja, nunca haviam atuado antes.

Isso
evidencia a capacidade artística e versatilidade do elenco, assim como a capacidade de
direção de Gaspar Noe, já que as caracterizações dos personagens são
críveis.

O filme todo fora gravado em apenas 18 dias, em ordem cronológica de acontecimentos e sem script, o que, na mão de pessoas medianamente talentosas, seria um sério problema. No caso, é o completo oposto, temos aqui o que considero como a melhor obra do diretor até o momento.


Deste clima de empolgação, o ambiente vai se transformando lentamente, até ficar inevitável a percepção de que algo não está bem. O desconhecimento dos personagens deixa a situação ainda mais amedrontadora, abrindo espaço para o caos que instaura-se com pequenos gestos imprecisos e feições confusas, atingindo seu ápice no ódio e fluxo de sentimentos e movimentos que não mais são regidos pela racionalidade. Para construir a forma que os dançarinos imitaram os
movimentos confusos e dispersos de pessoas que estão sobre o efeito de
LSD, Gaspar Noe mostrou inúmeros vídeos de pessoas dançando sobre o
efeito do ácido para que conseguissem se movimentar da forma mais
fidedigna possível.

  

A sensação é estar, de fato, assistindo ao inferno. A atuação carregada dos dançarinos coopera em grande medida para o peso de algumas cenas; a fotografia vermelha brilhante e dominante no ambiente retira nossa percepção de qualquer segurança que um dia existiu; a trilha que antes passava uma energia positiva de animação, agora fora revertida em algo bizarro, e a câmera que nos dá a sensação de estarmos observando aquilo tudo como voyers, retira completamente nossa percepção de espaço, sendo capaz de causar confusão e perda de direção nos espectadores em um cômodo tão pequeno como o local de ensaio. 
O sentimento de paranoia, ódio, vingança, desejo sexual e instinto de sobrevivência são muito mais do que bem tratados. Sentimos as agonias dos personagens, queremos entrar no filme e gritar para saírem dali, se trancarem em uma sala até o caos passar. Fica claro que todos ali estão em perigo, isolados no meio do nada, com quase a totalidade de seus membros completamente loucos e alucinados, vivendo entre uma utopia e uma distopia, fora do espaço/tempo em que uma longínqua humanidade habita. A referência a Salo: Os 120 Dias de Sodoma não era uma brincadeira.

Gaspar Noe também encontrou inspiração em 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Para o diretor, este ponto do filme caminha na direção oposta da
evolução humana, um momento em que toda razão é jogada fora, e os
instintos mais primitivos de convivência, desejo, poder e força são
maximizados. O filme flerta com a desconstrução de uma ideia de que a natureza humana é passiva, polida, boa por si só. Quando tiramos os elementos que nos fazem “evoluídos”, somos jogados de volta ao estado da barbárie.

O ritmo do filme faz jus ao nome e a descrição do diretor. Vamos do paraíso ao inferno em somente uma hora e meia de filme. E, acreditem, é mais do que o suficiente. Gaspar Noe parece que conseguiu o equilíbrio de todas as suas habilidades e marcas como diretor, numa junção tão sucinta de mensagem que, em seu filme mais curto, fora quase cirúrgico das composições escolhidas. São
elementos que fazem de Climax a culminação de elementos de todas as suas obras. No mesmo nível ou até mesmo melhor que o famigerado Irreversível.



Climax
é um filme completo no que se propõe. Violência em cenas grotescas e pesadas na mais
crua percepção da natureza humana frente ao caos e descontrole.
Fotografia em vermelho, forte, brilhante e saturada, em um tom sombrio e
infernal. Uma câmera onipresente que capta os acontecimentos como um
voyer capta as mais podres ações do ser humano. Uma coreografia de dança
que, meus caros, é de um nível de qualidade quase indescritível. Uma excelente, mas nada pacífica, forma de celebrar o cinema nesse início de ano.

Título Original: Climax

Direção: Gaspar Noé

Duração: 96 minutos

Elenco: Sofia Boutella, Souheila Yacoub, Kiddy Smile, Romain, Guillermic, Thea Carla Schof e Alaia Alsafir.

Sinopse: Nos anos 90, um grupo de dançarinos urbanos se reúnem em um isolado internato, localizado no coração de uma floresta, para um importante ensaio. Ao fazerem uma última festa de comemoração, eles notam a atmosfera mudando e percebem que foram drogados quando uma estranha loucura toma de conta deles. Sem saberem o por que ou por quem, os jovens mergulham num turbilhão de paranoia e psicose. Enquanto para uns, parece o paraíso, para outros parece uma descida ao inferno.

Trailer:

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