Crítica: Stalker (1979, de Andrei Tarkovski)

É extremamente complexo o trabalho de interpretar um filme, principalmente quando a obra é imensamente abrangente em seus significados e desenvolvida de uma forma muito alegórica. Stalker, do magistral cineasta russo Andrei Tarkovski, coloca-se como um desses brilhantes casos em que uma obra de arte carrega tantas possibilidades e peculiaridades, que diversas interpretações cabem ao seu juízo. O próprio diretor chegou a afirmar que não há uma interpretação para o longa, que todas as realizadas estavam corretas. E é claro que isso adiciona um aspecto místico ao filme tão comentado e discutido por décadas. Portanto, muito mais do que se resignar a uma interpretação, Stalker é um daqueles filmes em que o espectador deve se atentar, sobretudo, à sua experiência sensorial, aplicando o que interpretar e da maneira que interpretar, sem, assim, esvaziar uma obra de tal porte.

A trama do longa é, a princípio, bastante simples: há cerca de vinte anos, meteoros, segundo as fontes oficiais, caíram em uma região que ficou denominada por a Zona. A polícia proibiu a visitação do enorme espaço, cercando-o e fazendo de tudo para abafar a fama do local. Dessa forma, surgem os Stalkers, pessoas especialistas em se infiltrar na região, que levam para dentro do local aqueles que estão dispostos a pagar para se aventurar e adentrar uma sala secreta que realizaria os desejos mais profundos de quem ali estivesse. Acompanhamos então dois homens, cujos apelidos remetem às profissões (o Professor e o Escritor), que adentram à Zona guiados por um stalker para chegar, então, à famosa sala.

Porém, como já é fundamentado na obra de Tarkovski, a trama serve, muitas vezes, como um mero pano para se estabelecer o verdadeiro interesse do cineasta quando produz sua arte: explorar, através de diálogos filosóficos e cenas imageticamente poéticas, as mais profundas questões que remetem à condição humana, ao sentido da vida, à fé, à arte, à política e, em suma, aos problemas que afligem os seres humanos em geral. Tarkovski é, acima de tudo, um poeta, e é através de um roteiro e diálogos extremamente complexos e também confusos, somado a composições visuais exuberantes e belissimamente construídas, que consegue adentrar de uma maneira muito particular nos temas que lhe interessam. E não é diferente e nem menos eficiente em Stalker.


A maneira como o diretor compõe as cenas e as monta no processo final é tão particular que se torna muito complexo avaliar objetivamente um trabalho de Tarkovski. Neste longa, temos uma narrativa, a princípio, um pouco mais próxima da convencionalidade do que em outros filmes seus, porém há, ainda assim, diversas camadas a serem debatidas. As personagens são escritas de uma maneira característica, porém se completando, formando assim uma trindade muito bem estabelecida. Ao passo em que o Professor (em ótima interpretação de Nikolai Grinko) é uma figura mais paciente e sólida, porém com seus momentos de loucura e delírio; o Escritor (fenomenalmente encarnado por Anatoli Solonitsyn, que também atua em O Espelho, do mesmo diretor) se mostra, desde o princípio, ambicioso, impaciente e orgulhoso, mas que também possui seus momentos de completa plenitude e poesia. E para completar, o Stalker, em interpretação simplesmente fantástica de Aleksandr Kaydanovskiy, ocorre como uma síntese de diversas facetas dos dois, porém divido entre medo e amor àquele lugar.

Os três conduzem a narrativa de uma maneira absurda, percorrendo a Zona e debatendo, sempre que convém, temas relacionados principalmente ao sentido da vida e de sua situação, à fé como um meio legítimo (e não apenas a fé religiosa, mas também a fé em si e nos humanos) e à concepção da arte e das opressões políticas. Dessa forma, podemos elaborar que Tarkovski pode ter tido a intenção de desenhar críticas sobre a União Soviética ao mesmo tempo em que procurou explorar as camadas humanas acerca da existência e da fé transcendental a uma razão frágil. E como não podemos abordar uma obra sua sem criar um entrelaçamento entre os elementos técnicos e artísticos que compõe o objeto cinematográfico, é necessário notar como o diretor consegue aliar e convergir diversos meios para chegar ao seu objetivo: direção, fotografia, design de produção, direção de arte e, essencialmente, montagem.

A fantástica e tradicional mise-en-scène de Tarkovski se encontra presente, aliada à belíssima composição imagética da fotografia de Alexander Knyazhinsky, criando planos extremamente poéticos onde a câmera desliza pacientemente entre as personagens e o cenário, aproximando-se e tomando distância nos momentos certos para encontrar a subjetividade e intimidade necessárias. Há uma inteligente opção de filmar o início e o final do filme em um preto e branco com tons sépia para demonstrar a vida monótoma no “mundo real” dos personagens, em contraposição à belíssima variedade de cores deslumbrantes da Zona, que reforça a presença da natureza selvagem do local. E aqui temos outro elemento elaborado de uma forma totalmente cuidadosa e rica: a construção do cenário é um dos mais belos na filmografia do diretor, desde o ambiente industrial, destruído e afetado pelo tempo de algumas localidades, até a natureza muito rica do local que dá um aspecto singular à Zona e aproveita para entrar em um gancho com mais uma das muitas temáticas do cineasta, a relação do ser humano com a natureza.


Esses aspectos que, somados, compõem a poesia visual elaborada por Tarkovski, são elementos extremamente narrativos, pois, nas mãos do realizador russo, não são apenas os atores ou o roteiro que conduzem a sequência narrativa, mas também as imagens. O realizador utiliza de longos planos-sequência e de momentos de silêncio total, aliados pela magnífica trilha sonora precisa de Eduard Artemyev, para elaborar emblemáticas imagens que se tornaram ícone por todo seu poder visual e narrativo, e que carregam em si todo um peso e estatuto de verdadeiras obras de arte. Tarkovski utiliza então toda uma soma de variados elementos em conjunto para conseguir elaborar o diálogo profundamente necessário sobre o que o incomoda como ser humano, em sua fadada condição de existência.

E algo que faz (também) com que o filme funcione em um todo nos propósitos para os quais pretende se estabelecer é o modo como, diluídos em longas duas horas e quarenta e dois minutos de duração, estes elementos, por conta de sua fluidez combinada, naturalizam-se em cena, prendendo o espectador em meio a diálogos complexos, passagens bíblicas e poemas declamados, aparentemente, ao acaso. Dessa forma, o filme deixa de ser “cansativo”, como geralmente são taxadas as obras de Tarkovski, para se tornar uma condução através de uma longa trajetória humana artística e filosófica, sem nunca perder a sua verossimilhança, ainda que possua elementos extremamente pessoais e que possam distanciar o espectador de uma, a princípio, fácil compreensão.

O mais importante, sobretudo, em uma obra praticamente impossível de se analisar de um cineasta excessivamente pessoal, é entender a natureza das funções impostas pelo diretor e das intenções somadas e organizadas em tela de uma forma que façam algum sentido para o espectador – ainda que este “sentido” venha vestido de um não-sentido, porém capaz de causar um poderoso impacto em quem assiste. Por mais que seja uma obra de acesso complicado, Stalker dialoga com as mais profundas inquietações do ser humano sobre sua condição e suas contingências, conseguindo imprimir, em cada um que aprecia a obra, um particular sentimento, sentimento este acompanhado de uma elaboração ordenada de interpretações ou de, apenas, impressões sensoriais causadas pela soma do poder imagético e narrativo que compõe a película. O fato é que Stalker possui uma poderosa força artística para se inserir nos questionamentos que compõem o cinema e a arte de um modo geral, conseguindo preencher todos os pontos necessários para se estabelecer, definitivamente, como um dos maiores filmes já produzidos na breve história do cinema.


Título original: Stalker

Direção: Andrei Tarkovski

Elenco: Aleksandr Kaydanovskiy, Anatoliy Solonitsyn, Nikolay Grinko, Alisa Freyndlikh.

Sinopse: Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro da Zona, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro, são os “Stalkers”. Um escritor e um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis.

Trailer:
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