Crítica: Luke Cage (2016, de Cheo Hodari Coker) Blaxploitation e Black Music dão vida ao Harlem na 1ª temporada



A Netflix tem feito um excelente trabalho na produção de suas séries, com os heróis da Marvel, não poderia ser diferente. Depois do sucesso de Demolidor e de Jessica Jones, chegou a vez do herói à prova de balas do Harlem mostrar do que é feito em Marvel’s Luke Cage

Luke Cage teve sua origem na HQ Hero for Hire (Herói de Aluguel), no ínicio da década de 70, dois anos depois da explosão do Blaxploitation no cinema, gênero esse, que colocava a figura do negro como protagonista. Não à toa, Shaft, de 71, é dito ser o primeiro filme de ação com um herói negro a surgir nas telas do cinema. 

O showrunner e criador da série, Cheo Hodari Coker, que anteriormente já havia trabalhado em Notorious B.I.G.: Nenhum Sonho é Grande Demais e Southland, disse sobre a oportunidade de poder trabalhar em Luke Cage: “…não somente contar a história de um super herói e a evolução de um homem aceitando a responsabilidade daquilo que significa ser um herói, mas também a oportunidade de contar a história da comunidade, a história do Harlem, história dos negros, nosso lugar no mundo“.

Existem algumas mudanças na história do personagem com relação àquela contada em Herói de Aluguel, em parte para melhor adaptá-lo ao universo criado para a série, em parte simplesmente para torná-lo um personagem mais “heroico”. Em ambas as mídias a origem de seus poderes são iguais, Carl Lucas, é condenado injustamente e é levado até à uma prisão ilhada chamada Seagate. Dentro dessa prisão havia um experimento, ainda em teste, que prometia recuperações milagrosas à quem passasse pelo procedimento. Diferentemente da HQ, que Carl Lucas aceita participar do experimento de maneira voluntária em troca de condicional, na série, Reva, que a esta altura já havia criado algum vínculo com o prisioneiro injustiçado, pede ao Dr. Burnstein, o responsável pelo experimento, que o protegido passe pelo procedimento para se recuperar dos ferimentos recebidos na prisão. Como de praxe no universo dos super-heróis, as coisas não saem como esperado e o procedimento faz com que o prisioneiro se torne invulnerável, além de bastante forte. 



O motivo pelo qual o uniforme clássico amarelo não é usado – aparecendo somente em uma cena como easter egg – está atrelado às motivações de Luke Cage, que diferentemente de sua HQ de origem, não está relacionada a sua conta bancária. Tem um outro easter egg que mostra bem essas diferenças, que é quando a dona do restaurante lhe oferece dinheiro por proteção e ele responde com um “I’m not for hire”, o que de certa forma, além de servir de fan service à HQ, deixa claro o contraste de motivações. E o que o uniforme tem a ver? Na HQ ele o adquire em uma loja de fantasia, usando como forma de marketing para se auto promover. Uma outra diferença é seu relacionamento com o antagonista Cáscavel/Diamondback, que na HQ, apesar de ambos terem crescido juntos, não possuem nenhum parentesco, mas sim um interesse mútuo por Reva, que na série, como dito acima, conhece Luke Cage na prisão de Seagate. 

Na Netflix, Luke Cage teve sua primeira aparição em Jessica Jones, na qual ele possuía um bar e esporadicamente se unia à defensora em sua luta contra seu antagonista, Kilgrave, assumindo a postura de um personagem bastante bem resolvido, coisa que causa certo incômodo em determinados momentos em sua série solo, visto que ele parece menos assertivo, quase que em prol de fazer com que Claire – a enfermeira vivida por Rosario Dawson, que aparece nas séries solos dos Defensores – tenha uma importância maior em sua vida, já que ela é quem começa a instigá-lo ao bom samaritanismo. 



O primeiro grande vilão da série, Cottonmouth/Boca de Algodão, vivido pelo carismático Mahershala Ali, ou Mahershalalhashbaz, para os íntimos – que tinha acabado de ganhar um merecido Oscar de ator coadjuvante por sua participação no premiado Moonlight: Sob a Luz do Luar – é um antagonista bastante interessante, visto que ele, apesar de ser apresentado simplesmente como um chefão do crime, ao longo da série, vai ganhando novas nuances, fazendo com que o espectador crie uma maior empatia pelo personagem. De novo, a interpretação de Mahershala Ali é um dos grandes trunfos do personagem, fazendo-nos saber exatamente qual será sua reação a seguir, muitas vezes sem a necessidade de diálogo algum, simplesmente por suas expressões e trejeitos. 

A prima de Cottonmouth, também vilã, Black Mariah, interpretada por Alfre Woodward, à primeira vista nos parece bastante neutra, sem muito à acrescentar em termos de narrativa, mas ao longo da temporada temos uma percepção nova dela, não somente pelas novas camadas adquiridas pelos vislumbres de seu passado familiar junto com o primo no meio do crime, como também o amadurecimento da personagem como figura política intrínseca no mundo mais obscuro do Harlem. Curiosamente, Alfre Woodward, que interpreta Black Mariah, é figurinha repetida no MCU, já que já esteve presente em Capitão América: Guerra Civil, como sendo a mãe do garoto morto que confronta Tony Stark logo no início do longa. É algo que não chega a incomodar já que a participação dela no longa é bem pequena. 



Mike Colter, no papel de Luke Cage, é ok, mas em momentos que exigem um maior comprometimento do lado dramático, deixa um pouco a desejar, não conseguindo transmitir muito bem a carga emocional requerida pela cena.

Além de Pop (interpretado por Frankie Faison), que tem o papel de suma importância na vida de Cage, existem dois personagens que tem uma participação bastante peculiar, e que são imprescindíveis para o rumo que a série toma, que são a barbearia e o próprio Harlem. A expressão calmaria antes da tempestade, ilustra bem o início da série, em parte, pelas cenas acontecidas na barbearia, que são bastante tranquilas, cheias de humor, diálogos e referências à cultura pop. Aliás, referências à cultura pop é o que não falta na série, desde sacadas criativas utilizando O Poderoso Chefão à vilões parafraseando frases famosas de Os Selvagens da Noite, de 1979.



O quadro presente na sala de Cornell Stokes, o Boca de Algodão, que parece possuir vida, é uma representação do falecido rapper americano Notorious B.I.G., que segundo o showrunner da série, decidiu usá-lo para homenageá-lo. Cheo Hodari Coker disse que entrevistá-lo para revista Spin em 94 fez com que ganhasse a confiança do rapper para mais tarde, em seu último mês de vida, lhe concedesse a entrevista que acabou lhe servindo de base para poder escrever o livro sobre ele. A escrita do livro teve um efeito cascata na carreira do showrunner, visto que depois dele, teve o filme, também sobre Notorious B.I.G., o que o levou a fazer Southland, lhe garantindo assim um maior reconhecimento. É possível traçar um paralelo entre a história do rapper e a de Cornell Stokes, por algo dito por B.I.G. na entrevista dada à Cheo Hodari Coker para revista Spin. Segundo a entrevista, o rapper fala sobre a transição da maneira como as pessoas, inclusive a mãe dele, o viam, partindo de um garoto bobinho à um grande músico do hip-hop, coisa que era bem intimidadora. Na série, o adolescente Cornell é mostrado como um garoto bem mais inofensivo do que sua versão adulta. 



O Harlem, além de possuir importância narrativa dentro do contexto da trama, sendo a vida daqueles que nele vivem é que acabam sendo vítimas de sua criminalidade, discurso bastante utilizado pela Mariah, quando em sua função mais política de conselheira do bairro, é bastante destacado graças à fotografia da série, que consegue, por vezes, posicionamentos que te transportam às ruas do bairro. 

A crítica ao racismo presente na série não é muito expositiva, restringindo-se à um diálogo ou outro e à percepção que o próprio espectador adquire ao acompanhar o dia a dia nas ruas do Harlem de Luke Cage. 

Em entrevista, Cheo Hodari Coker disse: “Pessoas estão chamando Luke Cage de série de super-herói Black Lives Matter. Toda arte negra tem sido sobre nossas vidas tendo importância. Se falarmos de Zora Neale Hurston, James Baldwin, Ralph Elison, Richard Wright, seus romances e poesias são sobre nossas vidas tendo significado em um mundo que sempre nos denegriu. Quando você pensa em música, a mesma coisa. Então, toda arte negra é sobre nossas vidas importando, porque elas importam. Eu preferiria que o show não fosse oportuno, preferiria que o simbolismo implícito de ter um negro à prova de balas fosse irrelevante, que os negros não levassem tiros sem motivo.” 

Nota: Black Lives Matter (Vidas dos Negros Importam, em tradução livre) é um movimento social surgido nos Estados Unidos em 2013, que visa o fim da violência contra os negros. 



A trilha sonora está recheada de muito hip-hop, jazz e soul, o que ajuda a dar vida ao Harlem da série, tendo inclusive, performances ao vivo de Raphael Saadiq e Faith Evans no Harlem Paradise, além das composições de Adrian Lounge e Ali Shaheed Muhammad. Uma curiosidade, ainda relacionada com o lado musical da série, cada um dos treze episódios dessa primeira temporada tem o nome de uma canção do Gang Starr, iniciando com Moment of Truth e terminando com You Know My Steez.  
  
Além das referências já mencionadas mais acima, por vezes figuras importantes presentes na história dos negros são mencionadas, como Crispus Attucks, Martin Luther King, ou Malcolm X, que inclusive, dá nome a principal avenida do Harlem que aparece logo na abertura da série. Ademais, Luke Cage ainda conta com referências aos filmes pertencentes ao MCU, como os acontecimentos ocorridos em Os Vingadores, assim como faz menção aos heróis da Marvel presentes nas telonas, além de, é claro, as outras séries solos dos defensores da Netflix. Assim como feito no cinema, na série todas as menções aos acontecimentos dentro do micro verso da Netflix são feitas com muito cuidado, sem prejudicar a experiência de alguém de primeira viagem. Quando vemos a Claire falar sobre conhecer um bom advogado, ou quando à vemos dizer o “sweet christmas” de Luke Cage em Punho de Ferro, por exemplo, é algo que de forma alguma torna a série menos compreensível, já que são apenas detalhes imperceptíveis ao espectador de primeira viagem, mas se tornam uma cereja no bolo para quem sabe ao que se refere. 

Luke Cage é uma boa série, com personagens bastante carismáticos e uma história muito bem conduzida, tendo um ou dois episódios com um ritmo mais lento, mas nada que chegue a fazer querer desistir de vê-la. Posso dizer que Luke Cage e Demolidor foram os pontos altos até agora das séries da Marvel na Netflix, pois o ritmo lento de Jessica Jones e o roteiro mal desenvolvido de Punho de Ferro as fizeram deixar a desejar. 


Título Original: Marvel’s Luke Cage

Criado por: Cheo Hodari Coker

Direção: Paul McGuigan, Guillermo Navarro, Vincenzo Natali, Marc Jobst, Sam Miller, Andy Goddard, Magnus Martens, Tom Shankland, Stephen Surjik, George Tillman Jr.

Elenco: Mike Colter, Mahershala Ali, Simone Missick, Theo Rossi, Erik LaRay Harvey, Rosario Dawson, Alfre Woodard, Mustafa Shakir, Gabrielle Dennis



Sinopse: Depois de passar por um experimento que lhe garantiu invulnerabilidade e super força na prisão na qual cumpria pena injustamente, ex-presidiário passa a usar suas novas habilidades para ajudar a comunidade no Harlem. 

Trailer

E vocês? Viram Luke Cage? Curtiram? Tão na ansiedade para vê-lo em ação em Defensores?

Deixe uma resposta