Crítica: 3% (2016, 1ª temporada)

“A primeira produção original brasileira da Netfix”.


É assim que 3% vem sendo apresentada em suas diversas divulgações nas mídias brasileiras. Pontuo a informação porque ela traz expectativa, já que o serviço de streaming mais famoso e eficiente da atualidade já se provou capaz de produzir obras memoráveis, mesmo com sua pouca idade. O serviço oferece bastante potencial ao se afastar de certas concessões de conteúdo e horário a que algumas produções de canais tradicionais são submetidas. Por isso é de se esperar que os escolhidos no processo de seleção da Netflix saibam se aproveitar do privilégio que tem em mãos, na sua forma e no seu conteúdo, e embora 3% tenha uma boa premissa e alguns bons momentos, infelizmente apresenta problemas demais e suficientes para prejudicar praticamente todo seu desenvolvimento.


A história se passa num futuro distópico onde a sociedade é social e geograficamente dividida entre o “Lado de Cá” e o “Lado de Lá”, sendo a primeira onde grande parte da população vive em condições precárias; a segunda é onde reside um grupo seleto, que supostamente vive em condições perfeitas, sendo esses escolhidos num processo anual de triagem que leva em conta a meritocracia através de provas que avaliam a capacidade física e intelectual dos participantes.
O evidente ponto principal de 3% é seu pano de fundo de ficção científica servindo de base para uma extrapolação dos problemas de desigualdade social no Brasil. Esse cenário é apresentado com eficiência ao longo do episódio piloto quando vemos que o local de realização do “Processo” é na “Amazônia Subequatorial”, um aparente deserto inóspito que denuncia o futuro catastrófico em que a série se passa. No discurso de Ezequiel (João Miguel), somos apresentados à base do motivo de se realizar uma escolha tão restrita: a meritocracia absoluta. O “Lado de Lá” julgou que a única forma de escolher quem vai compor suas próprias gerações é a avaliação do mérito individual, o que levanta inúmeros paralelos óbvios com o contexto atual em que vivemos (e aqui fica impossível não lembrar dos concursos públicos): Todo mundo tem a mesma chance de passar? Quais são essas provas? Porque elas são as mais adequadas para determinar o futuro de tantas vidas? Porque a separação entre os lados é tão extrema?
Os problemas começam quando a série começa a desenvolver essas premissas e apresentar sua caracterização. É verdade que o trabalho de design de produção é competente e cumpre o seu papel diante da já conhecida limitação orçamentária. Mesmo sendo suficientemente crível a tecnologia e os hábitos apresentados pelos habitantes do “Lado de Lá”, com suas telas, projeções e arquitetura, é difícil não reparar na artificialidade do figurino e das atitudes dos que vivem na porção marginalizada. Parece não haver um cuidado para que haja essa diferenciação sociológica mínima entre um universo de pessoas que só viveu em um lugar durante 20 anos e outro completamente oposto (só a roupa artificialmente rasgada os diferencia). Aí entra o papel do roteiro em descrever o mundo e os personagens que habitam a história. Infelizmente é nele que se encontram os maiores problemas de 3%.
Escrito por 5 pessoas, o roteiro começa a se mostrar frágil em praticamente todos os seus aspectos, mas o principal, o que define o problema que seguirá até o final da série, é a artificialidade no desenvolvimento dos personagens, que ao invés de serem dotados de complexidade e características próprias, são utilizados como artifícios diretos da trama. Significa que eles agem de acordo com as necessidades imediatas de uma sequência, de uma situação, e não com a coerência e organicidade que deveriam. Como exemplo, em certos episódios, um personagem específico é mostrado como confiante, líder e, principalmente, ponderado. Logo que colocado em uma situação extrema, bastam poucos momentos para o roteiro o transforme bruscamente num psicopata que tem a capacidade de matar com a maior crueldade e sem demonstrar sequer nenhuma de suas características anteriores, isso sem que haja uma tentativa de que essa mudança seja orgânica, gradativa e crível. (Sem dar spoilers, é uma sequência que tenta emular, de maneira malsucedida, o famoso Experimento de Stanford*).
Assim, temos também o vilão da vez, que apresenta todas as características exageradas de uma caricatura. Há também aquele que demonstra de maneira mais evidente o problema citado: o personagem que muda a todo momento de acordo com o que pede o imediatismo, de “eu dediquei toda a minha vida para estar aqui” para “eu só estou aqui por causa de alguém e não me importo com o Processo”. Até o personagem de Ezequiel, vivido pelo excelente João Miguel, parece não se soltar das limitações e dos diálogos ruins.
Aliás, diálogos expositivos são uma constante em todos os episódios da série. Praticamente a todo momento, um personagem explica o que cada cena anterior mostrou de maneira inequívoca. O fato ainda piora pela artificialidade com que são ditas pelos seus intérpretes. Aí entra outro problema evidente da série: a direção de atores. O ator que encarna um personagem é, obviamente, responsável por grande parte do que vemos na composição, mas é trabalho do diretor estabelecer o tom com que todos esses personagens trabalharão a serviço de sua visão do projeto.
A direção de César Charlone, responsável pela fotografia de grandes filmes como Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira, se mostra também bastante irregular, o que surpreende negativamente se levarmos em conta sua experiência como idealizador visual. O problema mais evidente aqui é a excessiva utilização de close-ups e planos holandeses (câmera inclinada em relação ao horizonte) sem seguir uma lógica visual e narrativa aparente. Essa técnica, geralmente utilizada para demostrar tensão ou ponto de vista subjetivo, é indiscriminadamente aplicada nos momentos de aflição, nos de calma, em diálogos comuns, em sequências rápidas, em momentos mais contidos; apenas para que em outros momentos, seja totalmente esquecida sob as mesmas circunstâncias. O resultado é uma estética irregular que prejudica o visual e a narrativa dos episódios.
Fica complicado não ver o aspecto amador que a série acaba transparecendo e isso não tem a ver com os valores de produção, e sim com a qualidade de escrita e das atuações. Mesmo com todos os problemas, 3% pode talvez funcionar para aqueles que buscam apenas um leve passatempo. Afinal, sua discussão ainda é relevante e pode originar debates instrutivos sobre o rumo que queremos para nossa sociedade. Uma coisa não dá para negar: existe um bom dinamismo na história. Mesmo que se possa sentir desmotivado com os problemas no roteiro, há um constante ritmo equilibrado que ainda consegue manter o espetador na maratona. A esperança é que a segunda temporada saiba utilizar essa qualidade aliada a uma boa revisão no roteiro e na direção.
*O Experimento da Prisão de Stanford foi realizado em 1971 por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Stanford. Consistia em analisar o comportamento de dois grupos divididos numa simulação de um ambiente prisional. Rendeu alguns filmes como A Experiência (2001), Detenção (2010) e O Experimento de Aprisionamento de Stanford (2015).
Título Original: 3%
Direção: César Charlone, Jotagá Crema, Daina Giannecchini, Dani Libardi
Elenco: Bianca Comparato, João Miguel, José Geraldo Rodrigues, Luciana Paes, Mel Fronckowiak, Michel Gomes, Nicolau Breyner, Rafael Lozano, Rodolfo Valente, Sérgio Mamberti, Vaneza Oliveira, Viviane Porto, Zezé Motta
Sinopse: A atração se passa num mundo distópico, depois de diversas crises que deixaram o planeta devastado. No norte do Brasil, a maior parte da população sobrevivente mora no Continente, um lugar miserável, decadente, onde falta tudo: água, comida, energia. Aos 20 anos de idade, todo cidadão tem direito de participar do Processo, uma seleção que oferece a única chance de passar para o Maralto, onde tudo é abundante e há oportunidades de uma vida digna e justa. Mas somente 3% dos candidatos são aprovados no Processo.


Trailer


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