Crítica: Onde Andará Dulce Veiga? (2008, de Guilherme de Almeida Prado)

Onde Andará Dulce Veiga? é uma adaptação cinematográfica do romance homônimo do escritor Caio Fernando Abreu. No início, juntamente com o diretor Guilherme de Almeida Prado, a ideia era fazer um filme, o que resultou em um roteiro que ficou engavetado por anos graças a crise no país e a má fase do cinema nacional. Para manter viva a história, escreveu Onde Andará Dulce Veiga?, seu livro mais traduzido, e muitas décadas depois um novo roteiro teve a chance de ser viabilizado por Guilherme, no entanto esta é uma obra que Caio jamais conheceu.






No filme acompanhamos a trajetória singular de um jornalista em busca de respostas, tanto aos questionamentos voltados ao paradeiro da cantora Dulce Veiga, há anos distante dos holofotes, quanto às suas próprias questões existenciais. Quando conhecemos o jornalista, ou Caio, ele está perdido, passando por dificuldades, e aceita um pouco contrariado o emprego em um jornal, lá sua primeira matéria o conduz à inevitabilidade dessa busca. Ao entrevistar Márcia Felácio, nova estrela do rock e vocalista da banda Vaginas Dentatas, descobre que ela é filha de Dulce, e a lembrança da cantora esquecida toma conta dele. É então que, em paralelo com a entrevista e divulgação da banda, escreve uma matéria que faz ressoar a memória de Dulce em todos que a conheceram no passado, e cria-se a necessidade de saber o que aconteceu a ela, trazer de volta aquela que foi a voz de uma era.

Nos filmes de Guilherme a mulher tem sempre um grande papel, o protagonismo, a ela pertence o brilho e a decisão de seu destino ainda que tenha dúvidas sobre qual seja. Há uma constante aura de encantamento ao seu redor por mais humana que se mostre, e na qual Dulce Veiga também estará mergulhada, neste caso através da memória e das ilusões do jornalista, e Maitê é esta perfeita encarnação do belo, da força indomável, do que há de real e imaginário e da incompreensão. Ao mesmo tempo, a ausência de Dulce dá a entender que há uma nova musa por vir, sua filha Márcia cada vez mais em destaque, segue seus passos demonstrando ser um talento tão promissor quanto uma pessoa problemática, tal qual a mãe foi no passado, transmitindo também a obsessão do jornalista de uma pessoa para a outra.


A realidade por trás da fama e do sucesso: Um jogo de tudo e nada

Carolina Dieckmann é Márcia Francisca da Veiga Prado, Márcia Felácio para liderar sua banda, – “Márcia F. para os amigos”, como o verdadeiro Caio um dia foi Caio F. – uma pessoa em busca do seu lugar no mundo, vivendo em uma montanha-russa de altos e baixos repentinos, escondida atrás das drogas, das suas roupas de couro e tachas, dos dentes prestes a rasgar que são o logo da banda, e da sua máscara de maquiagem pesada e atitude forte, ela vai da grande ousadia de palco a uma enorme vulnerabilidade de corpo e alma, quando se despe literal e emocionalmente da musa que construiu. É dela a voz, a fragilidade e o poder, e se ela se pergunta se pode amar e ser amada pelo que realmente é, esta dúvida pode não fazer tanto sentido para o público, já que é difícil não vê-la se tornar uma obsessão, o ponto que queremos que nos conduza, não importa para onde.

Caio, por sua vez, vivido por Eriberto Leão, se encontra em uma trama cheia de mentiras ou meias verdades, em um contexto muito perigoso para a sanidade de alguém, e ele se deixa levar pelos seus próprios desejos e expectativas, enquanto questiona a si e as figuras que se apresentam a ele, para contar versões muito pessoais ou fantasiosas da mesma história. Diferente das suas estrelas, ele se deixa levar, acredita pouco no seu sucesso e no seu futuro, como se estivesse predestinado ao fracasso e ao anonimato, segue sobrevivendo, ele é opaco e tenta chamar pouca atenção para si mesmo colocando seu novo objetivo na frente, mas graças a isso é levado a fazer novas escolhas de vida, percebendo com o passar do tempo a sua força, algo que as outras pessoas tentam diminuir, ou evitar, pois está cada vez mais perceptível, embora ele tente não ver dessa forma.

Passado e presente se entrelaçam no filme, deixando um leve questionamento sobre o futuro

O elenco conta ainda com a presença de algumas das musas constantes de Guilherme, e através dos depoimentos colhidos pelo jornalista, e alguns encontros imprevistos, cada ator e atriz tem seu grande momento. A trama é muito bem conduzida e segue um ritmo perfeito, ao contrário de muitas adaptações surpreende, pois partindo da mesma premissa do texto original consegue ser contada de um modo novo sem comprometer a primeira ideia. Com um apropriado trabalho de cor, objetos, figurino e locações que consegue transmitir a ambientação dos anos 80 e 60, e seus pontos de fusão entre inserções bem caracterizadas de lembranças, imaginação, e essa mistura de realidade, ilusão, dúvida e sonho, que dão alguma poesia ao sugerido suspense de saber o paradeiro da cantora e estar cada vez mais perto da verdade.

A metalinguagem é exercitada com diversas referências a filmes específicos, a uma discussão sobre cinema em geral, e à produção nacional, ainda dando espaço para referências singulares sobre música, teatro, televisão e arte. Há ainda um dinamismo marcado pelos planos e “viradas” da trama e das cenas, que se alternam diante de nós enquanto somos conduzidos tanto quanto Caio por essa rede de informações desconexas, como se o plano da mente encontrasse espaço na tela. O simbolismo está presente nos detalhes, nas imagens das portas como obstáculos a vencer, ou com o objetivo de guardar o que se deseja, como a intimidade de uma conversa ou um segredo, algo que pode mudar pela interferência de terceiros ou da própria vontade; nos incontáveis símbolos, na imagem que cada pessoa constrói para si, na sexualidade e nas polaridades do feminino e do masculino que cada ser humano carrega.

Por ser um filme que engloba o universo musical, a trilha é tratada com rigor e cuidado, sendo quase que completamente autoral, com poemas de Caio musicados por Laura Finocchiaro, e uma das mais representativas canções do filme, Poltrona Verde, também presente no livro, musicada por Hermelino Neder, que compôs o restante da trilha sonora, com eventuais participações de Guilherme e Arrigo Barnabé. As únicas músicas que não são de Hermelino ou que não tem letra de Caio são Alguém Como Tu, de José Maria de Abreu e Jair Amorim, e uma versão modificada de Meditação, de Tom Jobim e Newton Mendonça, para dar a sensação de dèjá vu no espectador.

A temática da AIDS, e o misticismo em várias passagens do livro, bem como algumas personagens foram deixadas de lado na versão para cinema, mas talvez o que realmente faça falta seja a entrevista de Márcia, que conta detalhadamente como foram os anos sem a mãe, cujo relato se assemelha a um canto de sereia, envolvente e devastador, e um foco maior na vida pessoal do jornalista, que no filme está completamente voltado para a sua investigação.

Sobre fama, sucesso, escolhas, identidade, amor, solidão e a busca por nós mesmos, – nas palavras de Dulce uma busca por “outra coisa”, uma busca para dar real significado à existência – Onde Andará Dulce Veiga?, assim como a literatura de Caio, é considerado um filme B, visto e conhecido por poucos. E há que se dizer que apesar de conter elementos “vendáveis”, seu estilo em muito difere das produções nacionais, e é importante que hajam filmes como este, trazendo novas propostas e histórias que fogem ao comum entre títulos tão repetitivos no cinema.

Curiosidade: Onde Andará Dulce Veiga? se baseia principalmente na crônica para jornal Onde Andará Lyris Castellani?, em que Caio relembra uma atriz admirada por ele que deixou os holofotes sem aviso. Há de se notar que esse texto é muito semelhante à versão que o jornalista escreve sobre Dulce Veiga.

Onde Andará Dulce Veiga?

Direção: Guilherme de Almeida Prado

Elenco: Eriberto Leão, Carolina Dieckmann, Maitê Proença, Cacá Rosset, Oscar Magrini, Nuno Leal Maia, Carmo Dalla Vecchia, Maíra Chasseroux, Christiane Torloni, Júlia Lemmertz, Francarlos Reis, Matilde Mastrangi, Imara Reis

Sinopse: Jornalista inicia investigação para solucionar o misterioso desaparecimento da cantora Dulce Veiga, tendo que descobrir mais sobre si mesmo durante o desenrolar desta jornada.

Trailer:



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