O Palácio da Alvorada é, desde 1958, a residência oficial do Presidente da República do Brasil. O projeto do arquiteto Oscar Niemeyer e do engenheiro Joaquim Cardozo abrigou líderes políticos de diversos partidos, eleitos democraticamente ou não.
O local sempre foi alvo da imprensa: nos jornais diários, já se tem o imaginário estético da mansão de mármore com pilares brancos, cortinas de vidro e espelhos d’água onde circulam aves sob a sombra afamada das figuras escultóricas. Na mansão nada convidativa, algumas das decisões mais importantes do Brasil são tomadas.
Uma delas aconteceu em 2016, quando, em um tenso e fragilizado cenário político, foi construído um tabique que dividiu grande parte da população. A semente plantada no episódio se enraizou e desencadeou no processo político que elegeu Bolsonaro em 2018.
Dilma Rousseff, filiada ao PT, se tornou, em 2011, a primeira mulher eleita presidente no Brasil. Com reeleição acirrada em 2014 e uma jornada política fragilizada pela Copa do Mundo, Olimpíadas, eclosão de manifestações sociais e denúncias de corrupção de seu partido, a presidenta foi encurralada pela mídia tradicional e por representantes de todas as instâncias do país – de empresários a deputados, de senadores ao vice – a renunciar ao mandato.
Dilma, que se negou a tal ato, cumpriu 5 anos e 243 dias no palácio da Alvorada. Entre julho e setembro de 2016, Anna Muylaert e Lô Politi filmaram Alvorada. O documentário nos apresenta os momentos finais do processo que, embora tenha sido contado por inúmeras perspectivas – inclusive em documentários –, ainda tem frescor.
O desenrolar do processo, como é natural, teve narrativas distintas a partir de cada referencial estético e ideológico. No entanto, poucos deles buscaram, na testemunha da câmera que percorre e busca pelas histórias, seu método – embora seja este um dos processos mais comuns do documentário.
Alvorada, como sugere o título, é um filme íntimo ao palácio. A tensão do círculo íntimo de Dilma, espremido em salas de escritório em meio à papelada e aos quadros de Volpi e Di Cavalcanti, que se tornam também elementos cênicos, é colocada em cena paralela – por meio de uma bela montagem – ao funcionamento do palácio como um todo.
No filme, as reuniões principais reverberam no trabalho dos motoristas, guardas, cozinheiros, equipe de limpeza e garçons. Todos eles, no serviço expressivo de suas funções, co-constroem a narrativa do documentário. Tal ponto é, interessantemente, o trunfo da peça.
O filme, justamente, recorre à filmagem do real – com claras ressalvas da presidenta em momentos nos quais, por escolha dela, a câmera cessaria o registro – para desmistificar a imagem impetuosa, dura e raivosa que a imprensa construiu de Dilma. O tema, inclusive, é apontado nas variadas cenas que apresentam o relacionamento de Dilma com a imprensa.
Em uma delas, Dilma, que argumenta sobre a desumanização feita contra ela, profere: “Será que eu sou o que se eu não sou humana?”. A personagem retratada é humana e culta. Indicações de livros, apontamentos das obras Machado de Assis e Guimarães Rosa e as lembranças da ditadura – inclusive dos momentos de afago na prisão – são belas construções do sensível na figura da presidenta.
Alvorada, então, resgata a humanidade de uma personalidade política que, embora forte, não permaneceu impassível no processo que mobilizou o país e conduziu os passos futuros da democracia. Contudo, se a própria história dos fatos já foi recontada inúmeras vezes, o filme se destaca quando joga luzes nos porões do palácio.
O maquinário e a classe trabalhadora que vivencia o processo é serviente ao bem-estar do Palácio da Alvorada, e sua dinâmica de trabalho, muitas vezes, implica em excessos e em métodos insalubres – como na sequência de limpeza do lago, que despendeu uma grande quantia em dinheiro para troca dos filtros, da areia e, ao fim, nos apresenta um funcionário que incentiva a saída da água suja ao sugar o cano com a boca.
Tal fato, inclusive, é um alento à humanização e naturalização do filme, fato comum nas obras de Politi e Muylaert. Se o filme apresenta, com veemência, a arquitetura sórdida que nos levou à tomada de poder por Michel Temer em 2016, o registro também apresentou os ruídos e inauditas percepções daquela construção que abriga não só o chefe de Estado, mas todos os trabalhadores que sustentam aqueles pilares.
Ao fim, Alvorada deixa um potente e importante vestígio. A cena final é um alento dotado de certa inquietude. Assim, nos é deixada a mensagem real das pessoas que merecem ocupar o palácio, quiçá em diferentes funções.
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