Crítica: Bela Vingança (2020, de Emerald Fennell)


Os filmes de “estupro e vingança” (do inglês rape and revenge) começaram a ser definidos com esse título a partir da década de setenta como parte do cinema de exploitation (filmes apelativos que lidavam com temáticas desconfortáveis e faziam uso geralmente de muita violência explícita). Como o próprio nome sugere, o filmes de “estupro e vingança” são sobre vítimas de violência sexual (em sua maioria mulheres) que buscam se vingar contra seus agressores. 

Embora já existissem filmes que exploravam essa temática como A Fonte da Donzela dirigido por Ingmar Bergman em 1960, o subgênero se firmou e se popularizou através de produções como Aniversário Macabro de 1972 (dirigido por Wes Craven) e A Vingança de Jennifer de 1978 (dirigido por Meir Zarchi). Esses dois filmes, diferente do dirigido por Bergman, já se aproximavam bem mais do gênero exploitation por abordar essa temática sem nenhuma sutileza ou nuance e com uma crueldade exagerada.

As opiniões a cerca desse tipo de produção sempre foram ambíguas, gerando um certo nível de polêmica. Muitos consideram o subgênero como um desserviço a temática sobre violência sexual por resumir um tópico tão sério a uma sequência de cenas cartunescas de vingança, além do fato das cenas de estupro, na maioria desses filmes, serem extremamente gráficas e, às vezes, até mesmo fetichizadas, sem necessidade alguma para construção do enredo. 

Outros o enxergam como uma tentativa de empoderamento a vítimas de estupro, transformando a vítima indefesa em um vingador implacável. Porém essa segunda opinião já foi bastante refutada, especialmente entre teóricas feministas, pois é visível que filmes como A Vingança de Jennifer acabam por banalizar a violência sexual em função do entretenimento ao invés de realmente debater esse tema de forma complexa e conscientizada.


Promising Young Woman (traduzido no Brasil para o título genérico de Bela Vingança), assim como outras obras recentes dirigidas por mulheres tal qual Revenge (de Coralie Fargeat) e The Nightingale (de Jennifer Kent), não se encaixa exatamente dentro dos preceitos do subgênero de exploitation. Pelo contrário, a intenção do filme é exatamente desconstruir as características já estabelecidas sobre esse tipo de produção, e o filme alcança esse objetivo com inteligência. A produção já se distancia imediatamente do rape and revenge ao decidir não mostrar em momento algum a violência que motiva a narrativa do filme. Ao invés de focar no estupro em si, o filme prefere explorar a cultura criada em torno da violência sexual. Emerald Fennell, a diretora do longa, utiliza certos atributos narrativos do rape and revenge para elaborar um enredo contextualizado e amplo sobre a cultura de estupro. 

Então, ao invés de focalizar seu enredo na vingança, Fennell decidiu articular uma discussão profunda de como a violência sexual se tornou naturalizada a ponto dessa agressão ser vista apenas como um pequeno erro momentâneo. O roteiro de Promising Young Woman está mais concentrado em desenvolver sua temática central do que contar uma história intimista e pessoal sobre o trauma dessa violência na vítima, como fez, por exemplo, uma outra excelente produção lançada em 2020, a minissérie I May Destroy You. Enquanto a série de Michaela Coel retrata uma situação mais pessoal focalizando no trauma da sobrevivente da agressão e como ela lida com ele, o filme de Fennell centraliza seu foco no contexto ao redor da violência e nos efeitos que tiveram na amiga da vítima. Mas as duas obras, embora extremamente distintas, representam de maneira complexa e profunda a temática do estupro.

A obra de Emerald Fennell começa com Cassie (interpretada brilhantemente por Carey Mulligan que, inclusive, conquistou o Critic’s Choice Awards pela sua atuação.) arquitetando seu plano de atrair possíveis assediadores/estupradores ao se passar por bêbada em um bar. Ela finge estar em uma posição de vulnerabilidade e aguarda até que algum “cara legal” com más intenções se ofereça para ajudá-la.  “Elas se colocam em perigo, garotas assim” diz um dos homens que observa a protagonista enquanto ela parece não conseguir ficar de pé. Esse momento representa uma mentalidade coletiva que a sociedade construiu sobre vítimas de assédio e estupro. A sociedade isenta o agressor de culpa e a repõe sobre o agredido por “não ter se cuidado melhor”. E é exatamente esse o argumento que Fennell quer destacar: como a violência sexual contra mulheres é banalizada e tratada como um problema causado pela vítima e não pelo agressor.

Quando algum dos homens que a rodeia se oferece para ajudá-la e a leva para casa com a intenção de se aproveitar da mesma, Cassie sai do personagem colocando o “cara legal” contra parede. E todos têm sempre a mesma desculpa: “não queria te fazer mal”, “tinha boas intenções”, “só estava querendo ajudar” e “sou um cara legal”. Para essa última, ela indaga: “é um cara legal mesmo?”. Eles tentam se passar por ingênuos e fingir que não sabiam que Cassie não tinha condição alguma de consentir. Quando, na verdade, eles só queriam se aproveitar da possibilidade de não haver consequências para a violência que estavam prestes a cometer. E essa é uma das realidades mais cris sobre o estupro, é um crime que, em uma grande maioria dos casos, o culpado sai impune.

Cassie passa a enganar esses homens depois que sua melhor amiga, Nina, se torna vítima de um desses “caras legais” quando as duas estavam na faculdade. Enquanto as duas estavam cursando medicina, ela foi a uma festa com colegas de classe que se aproveitaram da mesma enquanto ela estava bêbada. Cassie e Nina tentaram denunciar os responsáveis, mas devido a falta de evidências os agressores de Nina saíram impunes. Durante o filme, somos apresentados aos poucos às pessoas que foram cúmplices da agressão que aconteceu com Nina. Embora seja um filme ficcional, Promising Young Woman constrói um retrato fiel da banalização do estupro e negligência às vitimas dessa violência, especialmente quando a reputação de uma instituição está em jogo. 

Casos de violência sexual em campi universitários são absurdamente comuns, e na maioria esmagadora dos casos esses espaços preferem silenciar as vítimas para esconder os crimes que acontecem sob sua responsabilidade, ao invés de dar apoio jurídico e psicológico a elas. E é exatamente o que a reitora Walker faz no filme, varrendo o caso para debaixo do tapete para acobertar a situação. Assim como a antiga colega de Cassie e Nina, Madison, que também prefere ignorar o ocorrido já que Nina tinha “uma má reputação”. No fim das contas, as duas preferem comprar a versão do agressor do que ouvir a vítima. Assim, ignoram a denúncia de Nina e transformam Al Monroe no “pobre rapaz acusado injustamente”. Enquanto a real vítima se vê para sempre estigmatizada pela violência que sofreu e incapaz de conseguir justiça.

O único erro de Promising Young Woman é, talvez, retratar as mulheres que banalizaram e duvidaram da violência sofrida por Nina como quase tão culpáveis quanto seu agressor. Claro que indivíduos que culpabilizam sobreviventes de agressão sexual como as reais motivadoras da violência são execráveis, mas de forma alguma merecem ser punidas tal qual o próprio culpado da agressão. E no fim das contas, a reitora Walker (interpretada por Connie Britton) e Madison (interpretada por Alison Brie) acabam pagando um preço maior que Monroe. Afinal, o mesmo foi apenas detido pela polícia, sendo minimamente responsabilizado por seus crimes cometidos, enquanto as duas sofreram desproporcionalmente por seus “delitos”, sendo colocadas em situações emocionalmente dolorosas.

Porém, em síntese, mesmo entre um erro ou outro, Promising Young Woman é um thriller eficaz que faz jus a sua premissa, entregando um enredo sólido e intrigante, fugindo de narrativas mais convencionais do “rape and revenge“. Fennell consegue, de forma perspicaz, subverter as expectativas do público baseado nas convenções que já conhecemos sobre o subgênero. Assim, a diretora consegue entregar um final inesperado, que, contraditoriamente, consegue ser frustrante e satisfatório ao mesmo tempo. Mesmo com algumas problemáticas em seu roteiro, o filme traz uma das tramas mais instigantes do cinema recente.


Título Original: Promising Young Woman
Direção: Emerald Fennell
Duração: 113 minutos
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Laverne Cox, Clancy Brown, Jennifer Coolidge, Connie Britton, Alfred Molina, Chris Lowell e Max Greenfield.
Sinopse: Cassie Thomas é uma jovem que decide se vingar depois que sua melhor amiga é sexualmente agredida em uma festa de fraternidade.


Trailer: 

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