Crítica: Atravessa a Vida (2020, de João Jardim)

Alerta de Gatilho: esse post fala sobre depressão e
suicídio. Evite esse texto caso você não estiver em um bom momento. Em qualquer hipótese, o Centro de Valorização à Vida realiza atendimento voluntário e gratuitamente por chat no site (c
vv.org.br)ou por telefone (188) para suporte emocional e prevenção ao suicídio.

O lado adolescente é um tema comum nas obras de João
Jardi
m. Em Pro Dia Nascer Feliz,
Jardim pegou de perto as vivências dos estudantes das redes públicas e
privadas. Chegou aos estudantes e
 em vez de perguntar sobre o que estudavam, permitiu que se abrissem. O lado reflexivo pendulava para o lado do problema
social: a educação é uma preocupação nacional.

Atravessa a Vida é um duplo bem curioso de seu antecessor. Em Pro Dia Nascer Feliz, a professora dá aula de História do Brasil, especificamente sobre a Era Vargas, mas os
estudantes logo se dis
persam e ela ameaça retirá-los da sala. Em
Atravessa a Vida, os alunos são filmados com frequência enquanto debatem,
demonstrando opiniões específicas quando questionados, por exemplo, sobre
aborto e pena de morte. Em Pro D
ia
Nascer Feliz
, a escola pública no interior do Rio de Janeiro dispensa os
alunos das aulas porque professores de algumas séries faltaram. Em
Atravessa a Vida, há uma demora para
começar uma das aulas, pelo de atraso do professor, mas outros docentes juntam
as salas para lidar com esse problema. Em Pro 
Dia Nascer Feliz, os professores são vistos pelos alunos como inimigos em
muitos desses relatos. Em
Atravessa a
Vida
, essa disparidade é abreviada; estudantes armam uma festa de aniversário surpresa
para uma professora – uma
cena que acompanha a força do dispositivo, em que uma câmera segue a professora
do lado de fora da sala, e outra câmera, do lado de dentro.

Parece que uma série de questões pendentes foram resolvidas
de 
Pro Dia Nascer Feliz até aqui, em
um intervalo de cerca de dez anos, visto que o lançamento foi em 2005. O
documentarista e sua equipe retornam
para um mesmo tema espacial: o lado
crítico ao sistema  e à estrutura e o íntimo pessoal retornam. Embora a estrutura e o íntimo pessoal também reapareçam, o contexto e as
noções já não são os mesmos. O protagonismo antes era o estudante como membro
da escola, agora é o estudante em transição – no meio termo entre estudar numa
escola e depois da escola, não necessariamente na faculdade.

Isso é fruto de um dispositivo, como anunciado no
começo do filme: três meses no espaço da escola pública Milton Dortas, no
estado do Sergipe, acompanhando os alunos do terceirão se prepararem para o Enem.
Um processo delicado, diferente do filme de 2005. Se antes a filmagem se organizava em torno dos tempos – períodos, trimestres letivos 
 e dos espaços  salas, escritórios, escola na periferia e no centro em diferentes
estados 
 para conversar com os alunos e professores em seus respectivos momentos,
agora vemos três meses dessa escola. Ou
seja, o filme existe por conta do
grande evento e do momento.

A primeira diferença notável aqui é que os estudantes são de
uma escola que exige uniforme, as outras escolas filmadas no outro filme não
exigiam uniformes. A segunda diferença é que a câmera pede pela não
interferência. A câmera acompanha as falas dos alunos,
não tendo medo e se
comunicando. A câmera entra, também, em um laço mais próximo entre professoras
e professores, estando muitas vezes entre discursos 
 fazendo chicotes de um e
para outro 
 e filma-os como personagens protagonizando suas histórias, o que
traz certa semelhança com o estilo Frederick Wiseman, diretor de
High School e do recente City
Hall
.

Conversas com alguns alunos se transformam em desabafos. Uma
estudante fala do lado opressivo e difícil de sua vida, há até relatos de
automutilação e suicídio consequentes da vivência escolar e de doenças psicológicas 
 essa garota alega ter sido agredida pela própria mãe, que falava que sua doença era besteira.
Curioso também como as emoções e ansiedades servem como assunto de uma das
aulas. Um dos momentos mais importantes do filme é uma aula de Português onde a
professora discute depressão com seus alunos. A aula é isso. Ela ensina o
autoconhecimento e fala sobre a importância de se abrir. Uma aula em um
círculo
, olho no olho.


Essa cena também revela que Atravessa a Vida é um filme que oferece muita esperança, dada uma
f
orça de recomeço que há em suas cenas. Os alunos falam do aqui e do agora e falam da atualidade. Eles estão encontrando os problemas e debatendo para
resolvê-los. A escola passa a ser o ambiente mais forte para os estudantes se
abrirem, para assim criarem uma força de união. E um corte seco para o desabafo
de outro jovem, cujo pai se afastava de sua responsabilidade e mandava os
filhos a pedirem
ajuda apenas para a mãe, o que o levou à sua independência
pessoal e ao objetivo de estudar para cuidar da mãe e do irmão.

Tanto que a reconstrução da escola é um símbolo de resistência do filme. Talvez seja por isso que há vários planos de pedreiros fazendo reformas na escola. As
aulas ocorrem mesmo ao som de furadeiras e marteladas. Aqui e agora, a
estrutura pequena da escola pública é valorizada, desde 2
016 – ano em que
várias pessoas se organizaram contra a forma de ensino nas escolas públicas, se juntando aos militantes pró Escola Sem Partido – e ainda mais durante 2018 – o ano das
filmagens, com uma leva de pessoas rechaçando as escolas públicas com toda potência e ódio possíveis. Por essa crítica, 
Atravessa a Vida mostra o lado criador
da escola pública, deixando viva uma chama de recomeço.


Título Original:
Atravessa a Vida

Direção : João Jardim

Duração: 84 minutos.

Elenco: Prof. Marcela, Daniela, Isolda, Prof. Fagner, Prof. Geraldo, João Jardim, Ramon, Prof. Paulo, Prof. Marluce

Sinopse: Enquanto alunos do 3º ano do ensino público no interior do Sergipe se preparam para a prova que pode determinar o resto de suas vidas, o documentário retrata as angústias e os prazeres da adolescência através de seus gestos, inquietações e conquistas.

Trailer:

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