Crítica: No Intenso Agora (2017, de João Moreira Salles)


    Um bom ponto de partida para falar sobre No Intenso Agora (2018) seria que me perguntasse o porquê de falar sobre ele. Não há brilho ali, enfim. Não há soluções interessantes, não há problemas pungentes, não há nada além de um título inspirado. Deveríamos, portanto, nos debruçar sobre este tipo de obra?

    Existindo aqui o texto, conclui o estimado leitor que a resposta só pode ser sim. 

    Em primeiro lugar, a posição privilegiada que Moreira Salles e família ocupam na vida cultural e artística brasileira é algo que faz com que seus produtos culturais sejam, ao menos, passíveis de consideração. Para além dos prédios cafonas do instituto com, é claro, o sobrenome da família – verdadeiros shoppings centers da poesia ruim – e de sua política excludente e predatória de arquivo, tem-se ali um núcleo incontornável para a história recente do audiovisual brasileiro pós-retomada, o que passa por um salto de qualidade técnica de produção e uma modificação da linguagem do filme brasileiro – muito mais próxima do televisivo e publicitário então. 

    Em segundo lugar, este texto existe porque a mediocridade de uma obra é algo tão complexo quanto a ruindade do ruim ou a magnificência do incrível: o opaco e o esquálido são, afinal, formas do real.

    Mas há um terceiro motivo que está no cerne da existência deste texto: é a capacidade de uma obra – qualquer que seja – de lançar luz à totalidade das obras que a circundam, bem como a aspectos da vida social. No Intenso Agora, a despeito de ser um filme esquecível, é um filme impressionantemente privilegiado para se pensar determinadas relações entre a arte e seus procedimentos, entre o fazer artístico e a vida social. Aqui se tentará justificar como essa leitura se dá.


    Falemos, a princípio, do uso de primeira pessoa no filme documentário. No Intenso Agora, bebendo da fonte de Chris Marker, tenta propor uma releitura sobre momentos da história mundial a partir de uma relação entre experiência pessoal e arquivo, algo que parece estar em voga no cinema nacional: Democracia em VertigemConstruindo PontesTerra deu Terra ComeMataram Meu Irmão são filmes que, nesta década, apostaram em algo análogo. O que este procedimento pode relevar? É aí que a coisa fica interessante. Em Mataram Meu Irmão, por exemplo, a busca de Burlan por contar a história do assassinato de seu irmão, percorrendo cidades, entrevistando amigos e familiares torna-se o testemunho da impossibilidade de se tratar a violência de forma neutra, sem sujar os olhos ou as mãos, posto que a violência atinge mesmo a linguagem. Em Democracia em Vertigem, muito mais próximo do tom (de voz inclusive) de No Intenso Agora, a tentativa é mostrar como a história política é necessariamente uma história pessoal, e vice-versa, não podendo o filme omitir a relação – ainda que a relação não seja lá das mais interessantes. Mesmo procedimento, pois, para sentidos distintos: a ética se constrói no ato de filmar.

    Em No Intenso Agora, pois, o que se tem é um narrador que – a partir de uma voz límpida mas de tom inabalavelmente circunscrito, morno – relata a viagem de sua mãe à China Maoísta a partir de filmes e fotografias de arquivo, relacionando esta experiência ao Maio de 68 francês e à Primavera de Praga. Constrói-se então, a partir das palavras do diretor, uma argumentação sobre as experiências de utopia do comunismo, sua intensificação nos eventos da França e sua desmobilização a partir daquilo que Moreira Salles acusa como cooptação das forças revolucionárias pelo mercado, dinheiro, política moderadora, social democracia. Exatamente onde ele, em seu tom de voz, se situa.

    O que se tem no documentário é, portanto, o oposto do que se vê nos filmes de Marker. Enquanto em Elegia a Alexandre ou Sans Soleil, a experiência pessoal é ponto de articulação e ruptura – a partir da memória-montagem, a partir da ética e da vontade do risco – , em Moreira Salles surgirá uma genealogia que coloca as coisas em seu lugar e explica onde o filme se situa. O papel da subjetividade será, portanto, uma ordenação. A história da mãe do diretor – e dele, pois, que aparece também nos arquivos – é a história de onde surge sua voz: ela viaja pelo o mundo, ela o entende, ela enfim nos explica. E sua explicação é justamente sobre a impossibilidade de que exista algo além do que o filme nos diz.


(Em Santiago, estamos sempre do lado de fora de um mundo P&B) 

  

    Nisto, torna-se interessante pensar que o âmago do pessoal em No Intenso Agora é o próprio sentido de uma história unívoca que não admitiria… perspectivas pessoais. A voz que articula a história é a mesma que diz: foi isso que se deu, é isso que se daria, é isso que se dará, abra uma conta no banco Itaú. Tem-se aí, enfim, um desdobramento dos tons escuros que predominam em Santiago e, a partir da copa do minúsculo apartamento do ex-mordomo – filmado a partir de outro cômodo – resumem sua história em uma melancolia subserviente, transformando tudo que existe no mundo em mera curiosidade exótica entre um e outro negócio mais sério.

    Aí está, enfim, o interesse deste texto na obra de Moreira Salles: o privilégio que ela oferece para observar como, no Brasil, alta-cultura ou letramento confundem-se com cinismo e não-engajamento (não no sentido do panfleto, mas no sentido da determinação de posição sobre o real). No Intenso Agora (assim como Santiago) parece performar a conciliação entre formas, experiências e tons que não se preocupa em fazer nada além de constatar, em tom levemente triste, que as coisas são como são. Foi a partir deste tom que nossa arte foi se afastando de qualquer potência crítica, de um lado, e de qualquer entrada efetiva na vida popular, de outro, ao se assumir como um discurso que não precisa de testes ou comprovações, que traz verdades a priori sobre o real justamente por não precisar defender seu local de enunciação. Há aqui seguranças terceirizados para tal.

    Por isso, se ainda pretendemos que – diante de um país que não mede esforços para se esfacelar – a arte possa ser produtora de dissenso, é necessário retransformar a história em remorso, como diria o ainda bom e velho Drummond. Isto significa, pois, revogar o privilégio da mediocridade – no sentido literal – que o discurso artístico não cessa de reivindicar para si. Devemos reanimar as formas, em sua vida bizarra que, encravada no real, é ficção e invenção. Não há pontos de partida já dados. Por isso a própria pessoalidade que anima os esforços de Chris Marker em mostrar, com Benjamin, que o passado só se mostra em fagulhas é usada em No Intenso Agora para produzir o sentido inverso, desmobilizar o real e dá-lo uma única direção. Sob o rótulo do subjetivo (que confundiu muito, aliás, a crítica de Democracia em Vertigem: um filme ruim não por isso, mas por sua posição enunciativa) está todo um leque de escolhas estéticas, éticas, políticas: o procedimento em si tem significado vazio. E é Moreira Salles que opta, em sua obra, por deixá-lo assim.

Título Original: No Intenso Agora

Direção: João Moreira Salles

Duração: 127 minutos

Trailer:

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