Crítica: Cópia Fiel (2010, de Abbas Kiarostami)


A realidade e a ficção se enveredam em um complexo jogo de interpretações melodramático.


O cinema de Abbas Kiarostami é marcado pela veia metalinguística que busca frequentemente expôr a condição cinematográfica da obra através da evidenciação da linguagem. Seja mostrando os mecanismos físicos que compõem o objeto artístico (como a câmera, o microfone, etc.), seja trazendo para dentro do próprio filme a realidade, ou seja, inserindo o real dentro da diegese. Em Close-Up, uma história verídica é recontada através da encenação por seus próprios participantes, colocando em xeque as nada estabelecidas definições de o que é cinema e o que não é. Cópia Fiel se envereda por um caminho similar, mas menos direto, ao trazer para o plano do drama a própria redefinição do que constitui a representação e suas nuances limítrofes.


O filme, de 2010, possui uma trama muito simples. James Miller, um autor britânico que acaba de lançar seu livro, Cópia Fiel, que supostamente analisa a dimensão da cópia em meio à pretensão de originalidade na arte, encontra-se com uma francesa dona de uma loja de antiguidades e os dois iniciam uma longa conversa pelas ruas de uma pequena cidade italiana. Em meio aos diálogos inicialmente entravados pelo estranhamento, surge e rebenta, então, um complexo jogo de interpretação que traz ao enredo os questionamentos do real e incide através de uma poderosa veia dramática.



Kiarostami constrói um filme simples (praticamente apenas dois atores e os diálogos) e que se fundamenta em dualidades – sejam elas “cópia x original”, “simples x complexo”, “ele x ela”. Mesmo a estrutura do filme se dispõe de uma dupla maneira que busca trazer à tela as dimensões da encenação e sua pretensão de verdade. Pela primeira metade do filme, a discussão se direciona entre o debate filosófico sobre a arte e, em certo grau, sobre o sentido da vida, simultaneamente ao passeio do casal em meio a seu próprio autoconhecimento. A virada ocorre a partir do momento em que começam a interpretar o papel de um verdadeiro (falso) casal e o debate passa do plano de objeto enunciativo para adentrar a própria dimensão da enunciação. Através da interpretação, Kiarostami desloca a própria discussão de que se é possível existir uma originalidade na arte para o campo da encenação e transforma os atores em experimento do próprio debate. O discurso se acopla à estrutura cinematográfica e o que passamos a assistir é uma farsa montada que, em sentido extremo, subverte o pensamento tradicional ao tangenciar a possibilidade da ficção se tornar realidade.



Sem virtuosismo técnico, marca do cinema de Kiarostami, que herda a mise-en-scène do neorrealismo italiano, Cópia Fiel articula um melodrama genuíno enquanto põe em evidência postulados sedimentados socioculturalmente pelas instituições que definem os limites do fazer artístico. A quebra com a transparência, para utilizar termos de Ismail Xavier, diferentemente de Close-Up, não se dá no plano da evidência da linguagem,  algo que buscaria trazer o real para dentro da ficção, mas assume uma dimensão mais complicada ao trazer o pretenso e falso real fílmico (o filme de ficção) para dentro da ficção interior (o jogo de mentira das personagens). Há, então, uma dupla dimensão da interpretação: não apenas a interpretação cinematográfica, primária, mas aquela dentro da própria interpretação e que cria um resgate do filme para os próprios paradigmas estabelecidos de uma obra de drama romântico.


E essa articulação do melodrama soa extremamente bem fundamentada na narrativa porque o falso jogo reflete a psicologia das próprias personagens e seus discursos. Portanto, não há apenas a dimensão da interpretação, mas esta mesma reverbera a interioridade daqueles que atuam. Trata-se de uma difícil teia de encenações que desembocam em um gênero tradicional do cinema. Tanto em primeira quanto em última instâncias, o que Kiarostami faz aqui é nada menos que cinema.




Cinema que, aliás, de quebra aproveita para absorver as reflexões já estabelecidas do cineasta sobre o tempo. Assim que a dimensão da interpretação mais profunda se assume, surge em tela um melancólico retrato da passagem temporal e seus reflexos sobre um casal em crise. Através dessa nuance pouco definida entre real e ficcional, há o desabrochar do drama, da encenação sentimental de duas pessoas em um casamento em crise. O tempo, assim como faz com a obra de arte, esculpe o casal que, em meio às marcas que todos os anos trazem, fundamenta uma obra-prima do cinema contemporâneo através da demonstração de que a linguagem não é apenas um artifício: ela constrói tudo ao redor.




Título Original: Copie Conforme


Direção: Abbas Kiarostami


Duração: 106 minutos


Elenco: Juliette Binoche, William Shimell


Sinopse: James Miller (William Shimell) é um filósofo inglês que vai a uma pequena cidade da Toscana apresentar seu livro sobre o valor da cópia na arte. Chegando lá, encontra Elle (Juliete Binoche), uma francesa que é dona de uma galeria de arte há muitos anos, que vive com seu filho pré-adolescente (Adrian moore). Eles passam a tarde juntos. Ao mesmo tempo em que vão se conhecendo, começam a desenvolver um complexo jogo de interpretação de personagens.


Trailer:

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