Entre aplausos e críticas, Hamilton vem para revolucionar os filmes musicais como conhecemos

Escrito e composto por Lin-Manuel Miranda (do musical In The Heights), Hamilton: An American Musical teve sua primeira apresentação off-Broadway em janeiro de 2015, no Teatro Público de Nova York. No mesmo ano, o musical chegou à Broadway com apresentações no Richard Rodgers Theatre, onde está até hoje, e desde então recebeu 11 Tony Awards, o Grammy de Melhor Álbum de Teatro Musical e o Pulitzer de Drama de 2016; fez algumas tours ao redor dos Estados Unidos e do Canadá; chegou até mesmo a se apresentar na Casa Branca a pedido do próprio Obama; e como esperado,conquistou sucesso mundial. Agora, para a felicidade dos fãs e dos curiosos, a Disney+ lançou o filme de Hamilton – uma gravação nos palcos do teatro feita em 2016, com o elenco original –, que embora seja capaz de saciar nossa vontade de ver o musical sem gastar uma fortuna, nos dá ainda mais vontade de presenciar essa obra-prima ao vivo pelo menos uma vez na vida.

A história segue a vida e a morte de Alexander Hamilton, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos e responsável por escrever 51 dos 85 artigos que formam os Artigos Federalistas, os quais ratificam a Constituição dos Estados Unidos. Além disso, ele também foi o primeiro Secretário do Tesouro do país, influenciando o desenvolvimento das bases do capitalismo estadunidense, e ainda estabeleceu o Primeiro Banco dos Estados Unidos. Mas isso não está nem perto de ser tudo. O musical não só explora as questões políticas nas quais estava envolvido como também aborda sua vida pessoal ao lado de Elizabeth Schuyler, as tensões amorosas entre ele e a irmã mais velha de sua esposa, Angelica Schuyler, e ainda o escândalo sexual com sua amante, Maria Reynolds. E isso ainda não é tudo.

O mais interessante sobre Hamilton é que ele consegue te contextualizar de uma forma incrível nos acontecimentos daqueles anos de formação dos Estados Unidos – das guerras à independência, do nascimento de uma nação até a morte do protagonista, nos revelando ainda os impactos que a sua existência deixou ao longo dos anos. A história também não gira apenas em torno de Alexander, mesmo ele estando na maioria das cenas, e nós somos capazes de entender também os pontos de vista das demais personagens desses acontecimentos históricos. Obviamente, se você estudou História dos Estados Unidos, as chances de você entender melhor o musical são bem mais altas do que quem cai de paraquedas – eu mesma –, todavia isso não faz com que ele seja de extrema complexidade, como já foi dito. Pelo contrário, depois que você termina de assistir, seu primeiro impulso é pesquisar sobre a vida de cada um só para ver se os fatos batem, e, pelo que posso dizer, ele é bastante realista. (E é pesquisando que você descobre curiosidades como: Aaron Burr, filho de Aaron Burr, teve um filho chamado Aaron Burr e uma filha chamada Theodosia com Theodosia, filha de Theodosia. Ah, a doce história estadunidense.)

Lin-Manuel Miranda é um gênio. Ao contrário do que alguns podem pensar, o fato de ser basicamente História não torna o musical nem um pouco caricato ou entediante. A maioria das músicas gira em torno de hip hop e rap, e de forma alguma beira o ridículo. Posso dizer com toda a certeza do mundo que esse é o melhor musical dos últimos anos, e acho muito difícil algum outro superá-lo em breve. Seu sucesso não é por nada: toda a sua história é perfeitamente encaixada, sem invenções mirabolantes que mudam os fatos – mesmo sendo uma interpretação do que pode ser acontecido no passado –, as músicas são sensacionais e únicas, o humor é dado na medida certa, assim como o drama, e ele ainda abre margem para diversas discussões a respeito de quem está certo ou errado, sem necessariamente pintar os vilões.

Acredito que o fato de “não pintarem vilões” tem muito a ver com o fato de que algumas coisas são baseadas em pontos de vista. Mesmo Alexander Hamilton sendo o protagonista, por diversas vezes eu achei suas decisões estúpidas, o que não o torna cegamente o herói da pátria. Isso, contudo, não significa que ele não fez bastante pelos Estados Unidos e que seu legado deve ser destruído. Para um musical de 2h40 de duração, criar tantas personagens tridimensionais é uma glória, principalmente quando ele é 100% musicado.

A respeito das atuações, preciso dizer que todos os atores, dos principais ao ensemble, fizeram um trabalho formidável. Lin-Manuel Miranda – além de tudo – interpreta Alexander Hamilton; aqui, ele se mostra confortável nos diversos papéis que faz – o do órfão empolgado para fazer algo, do jovem apaixonado, do marido arrependido –, tudo de forma extremamente crível. Phillipa Soo (Segredos e Despedidas) como Elizabeth Schuyler não fica para trás; sua voz é capaz de arrepiar até o último fio de cabelo quando a personagem expressa sua tristeza e sua música solo, Burn, é de tirar o fôlego.

As outras irmãs Schuyler são interpretadas por Renée Elise Goldsberry, que também participou de Rent: Os Boêmios – Ao Vivo na Broadway, e Jasmine Cephas Jones, de Ponto Cego e Mistress America. Renée cabe perfeitamente no papel de Angelica, a irmã mais velha e super empoderada, capaz de tirar o seu coração para dar à Eliza se necessário tamanho o amor que tem por sua irmã; sua música principal, Satisfied, é uma das minhas preferidas. Jasmine, por sua vez, faz o papel de Peggy, a irmã esquecida e que mal aparece nessa história, todavia a atriz tem seu momento de glória ao interpretar Maria Reynolds no segundo ato; é em Say No to This que ela mostra toda a capacidade de sua voz e te faz pensar “uau, ainda bem que deram esse papel para essa mulher”.

Leslie Odom Jr. (Harriet), por sua vez, ficou com o papel de Aaron Burr e não decepcionou nenhuma vez em sua atuação; quando a câmera foca em seu rosto, podemos ver o comprometimento do ator no papel, as emoções explodindo em sua face. Christopher Jackson (Olhos Que Condenam) como George Washington, então, nem se fala! Sua voz é uma delícia de se ouvir e, mesmo com poucas palavras, capaz de nos emocionar, principalmente durante a música One Last Time.

Jonathan Groff, de Glee e Mindhunter, faz o papel de Rei George III do Reino Unido, e mesmo tendo apenas participações pinceladas ao longo das histórias, todas elas são descaradamente cômicas e capazes de te fazer gargalhar. Anthony Ramos (Nasce Uma Estrela e Ela Quer Tudo), assim como Jasmine Cephas Jones, possui dois papéis importantes: John Laurens, amigo de Hamilton, no primeiro ato, e Philip Hamilton, filho de Alexander e Eliza, no segundo. Dizendo o básico, ele faz os dois papéis muito bem; sua voz é adorável e ele tem um rosto juvenil e adorável que combina bem com suas personagens.

Okieriete Onaodowan (Station 19) vive Hercules Mulligan no primeiro ato e James Madison no segundo, e desde o início mostra seu talento; com sua voz imponente e grave, ele faz ótimas participações nas músicas, porém não possui um número só seu. E por fim, mas não menos importante, Daveed Diggs, de Ponto Cego e Unbreakable Kimmy Schmidt, atua como Marquis de Lafayette e Thomas Jefferson no primeiro e segundo ato, respectivamente. Embora ele já seja uma presença marcante no começo, é quando assume o papel de Thomas Jefferson que Diggs brilha, roubando toda a luz do palco para si. O humor está presente do modo que ele anda até o que ele fala e como ele o faz; sendo assim, é impossível não se divertir com a personagem e se apaixonar pela atuação de Daveed, uma das melhores de sua carreira – que, aliás, é recheada e atuações incríveis.

Todo esse apreço pelos atores porque eles – sem nos esquecermos do ensemble – carregam a peça. Obviamente, muitas pessoas merecem os créditos por fazerem esse filme ser tudo o que é, mas, por se tratar de um musical filmado no teatro, não temos cenários mirabolantes ou uma fotografia ousada com muitas nuances. O trabalho de Thomas Kail (Grease: Live! e Fosse/Verdon) como diretor foi muito mais presente nas escolhas das câmeras, do posicionamento delas, do que no conteúdo que nos é mostrado, e por isso podemos dizer que o seu trabalho também foi feito com maestria. Não há momentos em que estranhamos a câmera ou o foco dela; as escolhas são sempre feitas no que é mais importante em cada cena, mas não abandona a essência do teatro de várias coisas acontecerem ao mesmo tempo. Essa não é a primeira vez na história que filmam um musical na Broadway para fins comerciais – o mesmo aconteceu com Rent, Cats e Billy Elliot, para dizer o mínimo –, mas de todos os que eu vi, acredito que as escolhas feitas em Hamilton foram precisas e serviram seu propósito em todos os momentos.

No que diz respeito ao palco e ao cenário, o que temos são escadas que mudam de lugar em certas cenas e um tipo de varanda para dar um segundo andar ao palco; tudo é feito de madeira ou lembra o material a fim de dar um quê de antiguidade. Adereços também são usados para ajudar a contar a história, como mesas, cadeiras e lamparinas que vêm e vão. O palco contém dois círculos giratórios, um menor e outro maior que o cerca, e eles também são parte fundamental das coreografias. As luzes também são muito importantes para a ambientação e para ditar os sentimentos das personagens, e quem as controlou não cometeu erro algum, assim como os responsáveis por ligar, desligar, aumentar e diminuir o volume dos microfones e dos instrumentos – o que às vezes acontece. O maestro e os músicos não podem ser esquecidos; o trabalho da trilha sonora em um musical é o básico, mas as transições entre uma música e outra me surpreenderam pela sutileza – por ter passado anos ouvindo a trilha sonora original, pontos presentes apenas no musical ao vivo se realçaram para mim, mas se você não tem todas as nuances gravadas em sua cabeça, esses detalhes se tornam um tanto quanto imperceptíveis.

Para além disso, temos os figurinos maravilhosos e muito elaborados, tanto para os principais quanto para o ensemble; acho que eu nunca vou entender como conseguem trocar de roupas e sapatos tão rápido. A maquiagem não se destaca muito por ser bem natural, mesmo para as garotas ou para o Rei George III, e o cabelo da maioria das personagens é natural, sem o uso de perucas ou alisamento a fim de embranquecê-las, um ponto muito positivo.

Aliás, a questão do cabelo tem muito a ver com o elenco escolhido: para a felicidade de muitos – novamente eu –, a maioria dos atores não são brancos. A princípio, pensei que fossem apenas os principais, mas ao fim da primeira música, percebi que mesmo o ensemble era majoritariamente formado por pessoas de cor, e, para uma pessoa negra, perceber isso foi um tanto quanto emocionante.

Como fã de musicais, há coisas que eu reparo na indústria há anos, tanto na internacional quanto na nacional, e um desses fatos – sim, fatos – é que não há muitas pessoas negras ou de cor em papéis de protagonismo no meio artístico, como já discuti na matéria Negritude e cinema: obras que abordam questões de raça importantes para entender o século XXI. O próprio Lin-Manuel Miranda, junto com outros trabalhadores da indústria de teatro musical, lançou uma carta durante a ascensão dos movimentos de Black Lives Matter falando sobre os racismos que pessoas BIPOC (negras, indígenas e pessoas de cor, em tradução livre) sofreram e ainda sofrem no meio, o que reforça que essa observação não é coisa da minha cabeça. (Para esclarecer, ele entra na categoria “pessoas de cor” por descender de porto-riquenhos, ou seja, latinos, o que para nós não parece fazer muita diferença porque, bem, também somos latinos.) O que eu estou tentando dizer é que, primeiro, não é comum ter tanta diversidade no elenco de um musical e eu fiquei feliz por isso, ainda mais por não tentarem apagar as origens das pessoas com perucas ou lentes de contato; e segundo, essa diversidade acontece aqui muito provavelmente por ser um musical criado por alguém de cor que, assim como Jordan Peele, está dando oportunidades para pessoas que não são brancas também terem uma chance, e se não fosse o caso, provavelmente o elenco seria inteiramente branco.

Isso, contudo, não é o suficiente para alguns. Desde o lançamento do musical no Disney+, grupos de pessoas surgiram usando a hashtag #CancelHamilton (em português, #CanceleHamilton), já que, apesar de o musical dizer que Alexander e Eliza lutaram contra a escravidão, alguns defendem que Alexander Hamilton era um comerciante de escravos e, portanto, o que temos aqui são pessoas de diferentes etnias “cantando o som da supremacia branca”. De fato, é um pouco estranho pessoas brancas lutarem pelo fim da escravidão simplesmente porque negros são pessoas. Como todos nós sabemos, a escravidão só acabou por acharem que ter mais gente para fazer o dinheiro circular melhoraria a economia – em termos básicos, é isso o que eu me lembro da aula de História; me corrijam se eu estiver errada. E então, pesquisando um pouco, vi alguns sites dizendo que Alexander por si só não era dono de escravos, mas se envolveu ao longo de sua vida com muitas pessoas que eram donos de escravos e participou desse tipo de comércio no Caribe. Toda a complexidade que envolve Hamilton e os escravos foi deixada de lado no musical com uma boa passada de pano, e é por isso que as pessoas reclamam. Mas deveria Hamilton ser cancelado por isso?

Eu particularmente parto do princípio de que nós não devemos retirar obras de circulação independente do conteúdo que há nelas. Claro que, por exemplo, o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, pode incitar ideias nazistas e antissemitas, mas ele não poderia também ser visto como material de estudo? Recentemente, a HBO retirou E o Vento Levou do ar após protestos antirracistas; será que essa é a melhor opção? De certa forma, apagar do mundo obras que foram feitas é apagar parte da História, e se nós não tivermos no que nos basear mesmo que seja para criticarmos, apenas daremos mais brechas para o surgimento de novas obras de cunho similar. Dessa maneira, acredito que em vez de simplesmente cancelar e fingir que nada aconteceu, apagando tudo de nossas memórias, podemos usar a arte para reflexão e discussão, principalmente em se tratando de figuras históricas. É muito interessante o movimento que está acontecendo até mesmo ao pensarmos nas estátuas que vemos pelas ruas, e assim como defendo que não devemos destruí-las, mas sim colocá-las em museus para estudarmos o passado, não acho que livros ou filmes devam ser queimados, apagados, dizimados ou cancelados. Se há questões para discutirmos, então discutiremos, porque eu posso dizer que não saberia fazer metade das críticas sociais que eu faço hoje se não fosse pelo conhecimento que adquiri através da arte. Nós também aprendemos a escrever lendo livros ruins.
Sendo assim, posso dizer que Hamilton é uma produção maravilhosa e que eu gostaria de ter a oportunidade de ver ao vivo algum dia – e com oportunidade eu quero dizer dinheiro –, mesmo que não seja com o elenco original. Enquanto isso não acontece, esse filme é uma saída perfeita. Imersivo, podemos assistir aos dois atos sem ver o tempo passar, e a platéia estar presente só nos dá ainda mais a sensação de que estamos com um palco de teatro dentro da nossa casa, mas com direito a posicionamentos de câmera que mostram detalhes que nunca conseguiríamos ver a olho nu, independente do assento. Por mais que não seja o primeiro musical gravado nos palcos do teatro, as escolhas feitas para ele e seu sucesso imediato podem transformar a forma como transformam filmes em musicais, e talvez o público comece a dar mais valor para esse tipo de gravação – dessa forma, as chances de estragarem os musicais se tornam bem menores. Esse é o tipo de produção artística que pode ser vista como entretenimento ou como instrumento de estudo para os mais diversos campos, e eu sou apenas grata por terem gravado quatro anos atrás, quando eles não tinham metade do sucesso que têm hoje. Mesmo que você não se interesse pela História dos Estados Unidos, por musicais, por rap ou por hip hop, essa é uma obra que você deveria assistir o mais rápido possível.

Título Original: Hamilton


Direção: Thomas Kail

Duração: 160 minutos

Elenco: Lin-Manuel Miranda, Phillipa Soo, Daveed Diggs, Leslie Odom Jr., Renee Elise Goldsberry, Okieriete Onaodowan, Anthony Ramos, Christopher Jackson, Jonathan Groof, Jasmine Cephas Jones, Ephraim Sykes, entre outros.

Sinopse: Hamilton é um musical que conta a história dos Estados Unidos por vozes estadunidenses. Por meio da história de um dos principais fundadores estadunidenses e primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, a trilha sonora que mistura hip hop, jazz, R&B e Broadway revoluciona o teatro no The Richard Rodgers Theatre, na Broadway, em junho de 2016.

Trailer:

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