Por uma outra nova cinefilia

Este texto é uma conversa com Por uma Nova Cinefilia, artigo de Girish Shambu traduzido pela Revista Cinética. A tentativa neste texto é, justamente em suas diferenças, a mesma.

      Não restam dúvidas de que a história da produção e recepção de arte seja parte significativa da história da colonização do mundo. O ofício de ver uma obra, desde o princípio de sua teorização, foi parte de um esforço para criar um lado de dentro e um lado de fora para a Cultura (com c maiúsculo) em que fossem reconhecidas e valorizadas determinadas formas de ver e dizer, determinadas corporeidades, em detrimento a outras – que sabemos quais são. Este é o mundo da mimese, este é o mundo da retórica: a codificação de maneiras apropriadas a temas, efeitos apropriados a públicos, etc.


    A última grande manifestação conceitual deste esforço de demarcar os espaços da cultura, e que ainda ressoa nos dias de hoje, é a pretensão de um tipo específico de autonomia pós-romântica do campo artístico e da obra de arte – que Girish Shambu em nosso texto-base chama simplesmente de estética – em que se poderia conceber um produto cultural ou como uma manifestação independente de qualquer condição externa (ainda a hermenêutica) ou como uma espécie de produto de uma individualidade impenetrável (a função-autor, que Shambu critica em seu texto ao mesmo tempo que realiza, como se tentará apontar).


        Nisto chegamos à velha cinefilia que o crítico indiano-estadunidense descreve e acusa. A velha cinefilia é uma manifestação particular da sensibilidade pós-romântica que as vanguardas não foram capazes de superar com seus ensejos de destruição da representação, da univocidade do indivíduo e do espaço demarcado da arte – olhar para a África como grande parte da arte europeia olhou, por exemplo, significa não internalizar nenhum de seus aspectos para um projeto de construção de uma nova sociedade ou de um novo conceito de arte, mas simplesmente operar dentro do mesmo a partir de um outro, fixo. A velha cinefilia é, portanto, a igualmente velha pretensão de se mudar a arte sem mudar as condições sociais de recepção, divulgação e circulação da arte; mais ainda, a velha cinefilia é o mundo da obra de arte autônoma como obra de arte com locus social assegurado, ressoando um universal que, não por coincidência, se construiu na Europa e, depois, na América do Norte, em seu racismo e misoginia estruturais.





        A defesa de uma nova cinefilia e, portanto, de uma possibilidade de recepção e produção de arte com maior arroubo crítico – e autocrítico – é inseparável da tentativa de multiplicar acoplagens entre forma, enunciador e público. Ela é, portanto, uma disputa pelo conceito de estética, e não seu abandono, como pretende Shambu ao criticar o mundo da mise-en-scène. A estética, em nossa visão, é justamente o espaço em que é possível propor uma rearticulação entre quem diz e o que diz, uma defasagem construtiva entre as posições forçadamente estabilizadas no jogo pseudo-democrático da sociedade liberal. Reconstruir a crítica de arte, a cinefilia, como espaço de uma posicionalidade subjetiva (o termo é de Shambu) – isto é, como local em que pontos de vista parciais e autoidênticos sobre o mundo se manifestam – seria negligenciar justamente o valor político de uma obra de arte como… obra de arte, já que estética está bem longe de ser o mesmo que autonomia absoluta: anos e anos de Theodor Adorno, Susan Sontag, Gilda de Mello e Souza ou Flora Süssekind já disseram o suficiente sobre como qualquer produto cultural é indissociável das formas sociais de onde se origina e onde circula, daquilo que promove como visibilidade e dizibilidade, daquilo que propõe como variação e promessa. Não há maior espaço para uma reproposição ideológica ou política de corporeidades e identidades do que a estética, portanto: no fazer, no ensino e na crítica ela ainda permanece como limite sempre renovado.

        (Note-se que isto não tem nada a ver com uma tentativa de restaurar a aura divina da obra pré-romântica, nem seu local de prática superior e elitizada, mas apenas uma maneira de demonstrar a especificidade atual deste fazer: hoje, os carpinteiros têm sobretudo madeira, os agricultores têm sobretudo terra, os artistas têm sobretudo forma. Mas nada impede que os agricultores tenham algo de forma, nem os artistas tenham algo de terra, nem os agricultores tenham algo de madeira (aliás, é este o horizonte que se deve buscar na crítica social, este reconhecimento da impossibilidade de se traçar limites estritos entre as formas de vida, até que um dia se possa falar numa advocacia da abstração ou numa política da agronomia). A questão é justamente o que será colocado em relevo ou como norte do fazer tal como ele se dá em nossa sociedade atual, e a partir de onde se tentará superar o estado das coisas.)

    Sendo assim, os prazeres de uma nova cinefilia também devem ser predominantemente estéticos, justamente porque serão políticos, críticos, contestatórios; justamente porque darão visibilidade a corporalidades e pontos de vista não-hegemônicos e vazão a temas, maneiras e formas às quais a velha cinefilia está desacostumada. Conceber que a arte tenha que abdicar do seu fazer para se afirmar como prática política é pensar que a representação seja um empecilho para aquilo que seria um mundo real ou material, onde existiria a verdadeira pobreza ou a verdadeira política. Uma nova cinefilia deve acreditar na estética como espaço em que qualquer representatividade seja impossível, justamente porque é sua deriva que fará a forma ressoar e perdurar naquilo que é diferente a quem cria e a suas intenções. Algo distinto disso é a reafirmação da velhíssima metafísica do sujeito racional, base dos processos colonizatórios mais antigos.




        Isto não significa, de forma alguma, que a nova cinefilia abandone as condições materiais de produção da arte, justamente porque essa abstração seria a mais elitista e eurocêntrica possível, como já dissemos. A nova cinefilia entende que um filme precisa de condições mínimas de viabilização materiais, que os artistas volta e meia precisam comer, que há vozes que não se localizam nas grandes capitais dos grandes países, que o Estado precisa olhar para quem está embaixo, ao mesmo tempo em que um campo social de criação para além do Estado precisa se estabilizar. A nova cinefilia, contudo, entende que a estética se localiza para além e para aquém dessas determinações simultaneamente, trazendo-as mas não coincidindo com elas, ecoando-as mas não repetindo-as. Porque a nova cinefilia traz consigo uma teoria renovada da linguagem e do indivíduo, em que não se pode acreditar que um ponto de vista seja a expressão unilateral de um sujeito, nem que uma identidade determine o sentido de uma obra. A nova cinefilia é multiposicional.


        Antes de expandir uma ontologia do ponto de vista para todo o mundo, uma nova cinefilia deve fazer como Viveiros de Castro e perguntar às pessoas qual o seu ponto de vista sobre o ponto de vista. Portanto, um conceito como inclusão deve ser abandonado pela nova cinefilia, já que ele pressupõe a possibilidade de se construir uma totalidade a partir da soma das posições: o mundo não é uma entidade estática para a qual sujeitos autoidênticos observam. A estética deve ser compreendida, assim, como o espaço em que ontologias se põem em movimento, em que haja constantes colisões entre expectativas e atualidades, em que potências não desaguem, como um fardo, em realizações. A nova cinefilia entende que não se pode dar forma e visibilidade a corpos não-hegemônicos a partir de pressupostos do indivíduo e da história que sejam hegemônicos, como os de Shambu, e que tenham contribuído para estreitar os limites políticos da arte através de seu atrelamento a um horizonte de democracia representativa liberal. Não é o suficiente não igualar o valor das vozes, como faz o mercado e como acusa o crítico indiano: é necessário diferir também o valor da voz. Não só de quem diz, mas do próprio ato de dizer.

        Desabilitar o mundo da velha cinefilia, enfim, deve significar não só desmantelar certo tipo de corpo e identidade, mas também toda a maquinaria metafísica-ontológica-histórica que sustenta as posições atuais destes corpos em determinada configuração social. Tentativas bem-intencionadas de repropor a ordem das coisas podem ser, elas mesmas, fontes de incompreensão e pavimentação de ontologias: troca de uma hegemonia por outra hegemonia. Uma nova cinefilia, portanto, não poderia pressupor pressupostos a ninguém, ainda que eles sejam teorias da identidade ou do ponto de vista cuja intenção seja justamente dar voz a alguém: isto é suprimir a materialidade das vozes, limitar sua deriva, delimitar seu sentido, reproduzir a mesma dinâmica social a partir de outros termos. Mas não há democracia liberal possível na nova cinefilia.

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