Especial Cinema Nacional #3 – O Resto


             Enfia no cu, e então Zézero (Ozualdo Candeias, 1974) acaba. É esta a fala final da “fada da mídia de massas” que aparece para um camponês como uma assombração, e que o convence a ir para a cidade grande em busca dos sonhos de consumo estampados nas revistas que traz consigo. Sonhos estes que o homem, ao cabo, consegue realizar não pelo trabalho, mas pelo resultado da loteria esportiva, em que empregava quase todo o salário de fome que recebia na construção civil. No entanto, como uma espécie de Fausto da modernização conservadora, o preço que o camponês paga para ficar rico é perder o nexo com sua família, que desaparece no nada enquanto ele tenta fazer a vida em São Paulo. Diante da desolação da paisagem vazia que encontra em seu retorno ao interior, surge outra vez a “fada” no mesmo lugar em que se mostrou inicialmente. O camponês, desesperado pela perda de qualquer ligação com o lugar de onde se origina, pergunta a ela que fazer com tanto dinheiro. Já vimos sua contundente resposta, ainda mais enfática por ser repetida três vezes.
             No começo do filme de Candeias, a câmera passeia pelas revistas de celebridades, pelos jornais populares, pelos filmes Kodak que a fada traz como roupa; a montagem transforma essas referências em colagens, as justapõe e explode sua pretensa naturalidade também a partir do som: a fada faz de tudo pela sedução, também nossa. Nas revistas, muito futebol, bens de consumo, estilo e moda, ilustrações e humor, elementos comuns da vida urbana tecida a partir da publicidade. Mas não é nada disso que convence o camponês a largar sua vida no campo. A chave de leitura social proposta por Candeias é a do corpo, e são as modelos seminuas que fascinarão o homem, e que ele buscará encontrar na cidade grande – inclusive tendo comportamentos agressivos com mulheres que encontrará ali, em busca desta posse. O corpo, ao ser trazido pelas mídias de massa e aí neutralizado de qualquer potência de contestação, é visto como elemento de expropriação pulsional – uma leitura até meio adorniana do capitalismo –, como o local para o qual os desejos dos indivíduos de uma sociedade são canalizados por/como desejos de consumo, simbolização que atrela a posse de algo à posse de si ou do outro, sendo a recíproca verdadeira. E então entendemos a resposta que há naquela frase que fecha o filme. Há ali um argumento sobre o nexo entre corpo e linguagem dentro deste momento social, algo radicalizado pelo close na boca que repete cu com uma ênfase destacada, arredondando-se como… o seu referente. O dinheiro toma então o lugar do falo, assume-se como objeto de desejo na ilusão de preencher alguma falta exterior que, em verdade, é constitutiva ao indivíduo: diante daquele mundo então vazio de sentido na passagem camponês-burguês em jogo, isso só pode resultar em frustração.
            Há muito claro em Zézero, assim, um dos principais eixos ou argumentos do cinema de margem (Boca do Lixo, por exemplo e sobretudo) que emerge no Brasil como projeto estético próprio e resposta eficaz aos sonhos da ditadura civil-militar: a saber, a centralização daquilo que é tratado como resto não-simbolizável do processo autoritário de modernização conservadora do país. Se os discursos hegemônicos são vazios, se as grandes narrativas são puro cinismo diante da desintegração do horizonte de expectativas da vida social, isso significa que o momento de verdade do Brasil estará em tudo aquilo que é tratado como resto, pura exterioridade, lixo do progresso linear. Perder isso de vista é perder o sentido de obras como A Margem (Ozualdo Candeias, 1967), A Família do Barulho (Júlio Bressane, 1970), Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970), Mar de Rosas (Ana Carolina, 1977) e O Vampiro da Cinemateca (Jairo Ferreira, 1977): obras que apostam na decomposição da narrativa linear como ferramenta para a expressão de uma negatividade que – e este é o salto – não simplesmente se contrapõe ao projeto do Brasil-país-do-futuro, mas lhe é inerente.

Helena Ignez em A Família do Barulho

            Júlio Bressane talvez seja o cineasta que, ao longo de sua obra, mais radicalizou esta ideia do resto como verdade da vida social. O Anjo Nasceu (1969), por exemplo, é basicamente a trajetória de dois homens que invadem uma casa e torturam por um longo período, e de maneira agoniante, as duas mulheres que ali habitavam, até assassiná-las. Não há ali nenhuma perspectiva de explicar as motivações dos indivíduos, de fazer uma crítica sociológica ao sistema que pariu aqueles sujeitos, ou mesmo à burguesia que se permite ter casas enormes como aquela: o filme é pura negatividade da ordem social, expressa sobretudo na sequência em que o personagem de Hugo Carvana assiste ao pouso na Lua na televisão – mostrado no filme ao longo de quase 4 minutos – e, em uma única frase, resume suas observações sobre o assunto: tremendo otário.

            Em A Família do Barulho, em que a crise do petróleo se manifesta apenas como a possibilidade cafetinar uma odalisca para ganhar algum dinheiro, tem-se a partir da quebra radical da narrativa, da constante dobra do filme sobre si mesmo como representação, a negação de qualquer possibilidade de se agenciar um discurso coerente – como o do Cinema Novo – sobre a realidade brasileira, mesmo que criticando-a. E nisso entende-se, enfim, o sentido da palavra família colocado em jogo pelo título-pastiche da obra – apenas alguns anos após a famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade – que surge representando três indivíduos que mantém relações corporais ostensivas entre si, que se ofendem e se agridem, que cometem delitos e se prostituem. A mesma palavra surge a negar seu próprio sentido corrente. Pois, se família vinha sendo acima de tudo um nexo de cunho moralizante, abstrato e conservador naquele momento, Bressane coloca o baixo-corporal em cena para desnaturalizar esta relação, e repensar suas possibilidades – como fica claro na apoteótica sequência final do filme.
            Baixos corporais, violência não-justificada, insultos, lixo, paisagens urbanas caóticas e pobres a se mimetizar por quebra de narrativa, metalinguagem, interpelação direta ao espectador, câmera em movimento, mistura incessante de gêneros, trilha sonora caótica, letreiros e subtítulos excessivos, narrativas sem moral possível. Por mais anti-natural que possa parecer, este nicho do cinema brasileiro que aposta na negação de qualquer projeto de sociedade é, em verdade, um grande projeto estético – com seus limites históricos e possibilidade específicas, é claro, como qualquer outro. Está na pura negatividade a crença na latência de algo na realidade social que não coincide com os discursos que se fazem sobre ela: é dela que emerge este mundo, e não do nada: ela o produziu, como produziu a seleção de 70 ou o nacionalismo entreguista. Se a repetição exaustiva do marginal ou do maldito simplesmente esvaziou essas expressões de sentido – assim como fez com aquela seja marginal, seja herói que segue-se estampando por aí em plena vigência das demandas da democracia representativa –, é diante da crença generalizada na teleologia de um discurso positivista que pode-se, de fato, como nos anos 1970, falar da margem como um projeto estético de alcance em sua negatividade.


Helena Ignez em Copacabana Mon Amour

            O próprio Júlio Bressane no filme-ensaio Viola Chinesa: Meu Encontro com o Cinema Brasileiro (1975) parece aclarar um pouco este ponto e sua ligação com as imagens dos baixos-corporais colocados em cena neste projeto. Em seu diálogo com Grande Otelo – esta figura enorme que não cansa de calar dicotomias apressadas entre o popular e o intelectual –, Bressane afirma que não se pode confundir erotismo com essa rede de onanismo picareta que vem constituindo a mente cinematográfica contemporânea. Este ponto é crucial, e nos faz retornar ao sentido do corpo em jogo em Zézero. Não há negatividade-em-si em nenhum objeto: é necessário construí-la como discurso, ou a imagem se tornará objeto e positividade, será apropriada pelo discurso vigente. O corpo pode ser, assim, o corpo da chanchada: o gênero que, e veja só que sintomático, era fomentado pela ditadura, inclusive resultando nesse período em grande parte das maiores bilheterias da história do cinema nacional, como em Bem Dotado, o Homem de Itu (José Miziara, 1979), Como é Boa Nossa Empregada (Victor di Mello, 1973) ou Coisas Eróticas (Raffaele Rossi, 1982). Neste caso, o corpo é onanismo picareta, porque representado como objeto passivo de uma sexualidade heteronormativa que se expressa de maneira complacente, colocando o espectador como voyeur do óbvio, confirmando os termos do nexo social conservador – é isso que está em jogo criticamente em Zézero. Mas o corpo como erotismo, algo distinto disso, se traduz como desafio e resposta, potência de destituição da ordem, pulsão de materialização dos limites da experiência social. O cinema como erotismo é aquele que coloca o corpo – e, portanto, a sociedade – em situações que redimensionam sua imagem, alienam as impressões cristalizadas sobre si e se dobram sobre as experiências sociais como possibilidade.

             Por isso, muito longe ser simplesmente a constatação de uma aporia, este momento do cinema como boca do lixo traz em si um projeto de, pasme, dialética: encontrar no si-mesmo as condições para ser algo distinto. Não há contestação pela contestação. O lixo é tão produto da sociedade capitalista quanto os edifícios espelhados e automóveis, e cada qual revela algo sobre o estado desta sociedade, seu horizonte de expectativas, seu espaço de experiência. O corpo – e nisto está também a aposta de filmes contemporâneos como Febre do Rato (Cláudio Assis, 2012), Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) ou Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), evidentemente em novos termos e lançando luz a novos contextos – sempre trará consigo um a mais não simbolizado. Isto não significa, de forma alguma, abrir mão da representação como espaço de experiência coletiva. Significa, sim, que qualquer objeto pode ser tensionado ao seu limite, desnaturalizado, centralizado a partir de qualquer ponto: toda forma tem seu avesso, todo ato de linguagem é incompleto e, por isso, produtivo: só se veem filmes de 50 anos atrás ou livros de 1800 porque há neles algo que varia e que deixa ou torna a fazer sentido.
            A distância do resto ao essencial é unicamente uma representação que dê conta de inverter o sentido em jogo. Por isso, diante daqueles que defendem que o cinema deve dizer aquilo que “o povo” quer ouvir (sobre isso falaremos noutro dia), diante da defesa do entretenimento como categoria crítica, ou diante do discurso corrente que associa a arte ao belo – sem pensar que a beleza, como a educação, é uma categoria social – me parece que a grande lição que certa linha crítica do cinema brasileiro tem deixado para a posteridade é um produtivo, dialético e sonoro enfia no cu.

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