No começo do filme de Candeias, a câmera passeia pelas revistas de celebridades, pelos jornais populares, pelos filmes Kodak que a fada traz como roupa; a montagem transforma essas referências em colagens, as justapõe e explode sua pretensa naturalidade também a partir do som: a fada faz de tudo pela sedução, também nossa. Nas revistas, muito futebol, bens de consumo, estilo e moda, ilustrações e humor, elementos comuns da vida urbana tecida a partir da publicidade. Mas não é nada disso que convence o camponês a largar sua vida no campo. A chave de leitura social proposta por Candeias é a do corpo, e são as modelos seminuas que fascinarão o homem, e que ele buscará encontrar na cidade grande – inclusive tendo comportamentos agressivos com mulheres que encontrará ali, em busca desta posse. O corpo, ao ser trazido pelas mídias de massa e aí neutralizado de qualquer potência de contestação, é visto como elemento de expropriação pulsional – uma leitura até meio adorniana do capitalismo –, como o local para o qual os desejos dos indivíduos de uma sociedade são canalizados por/como desejos de consumo, simbolização que atrela a posse de algo à posse de si ou do outro, sendo a recíproca verdadeira. E então entendemos a resposta que há naquela frase que fecha o filme. Há ali um argumento sobre o nexo entre corpo e linguagem dentro deste momento social, algo radicalizado pelo close na boca que repete cu com uma ênfase destacada, arredondando-se como… o seu referente. O dinheiro toma então o lugar do falo, assume-se como objeto de desejo na ilusão de preencher alguma falta exterior que, em verdade, é constitutiva ao indivíduo: diante daquele mundo então vazio de sentido na passagem camponês-burguês em jogo, isso só pode resultar em frustração.
Júlio Bressane talvez seja o cineasta que, ao longo de sua obra, mais radicalizou esta ideia do resto como verdade da vida social. O Anjo Nasceu (1969), por exemplo, é basicamente a trajetória de dois homens que invadem uma casa e torturam por um longo período, e de maneira agoniante, as duas mulheres que ali habitavam, até assassiná-las. Não há ali nenhuma perspectiva de explicar as motivações dos indivíduos, de fazer uma crítica sociológica ao sistema que pariu aqueles sujeitos, ou mesmo à burguesia que se permite ter casas enormes como aquela: o filme é pura negatividade da ordem social, expressa sobretudo na sequência em que o personagem de Hugo Carvana assiste ao pouso na Lua na televisão – mostrado no filme ao longo de quase 4 minutos – e, em uma única frase, resume suas observações sobre o assunto: tremendo otário.
Baixos corporais, violência não-justificada, insultos, lixo, paisagens urbanas caóticas e pobres a se mimetizar por quebra de narrativa, metalinguagem, interpelação direta ao espectador, câmera em movimento, mistura incessante de gêneros, trilha sonora caótica, letreiros e subtítulos excessivos, narrativas sem moral possível. Por mais anti-natural que possa parecer, este nicho do cinema brasileiro que aposta na negação de qualquer projeto de sociedade é, em verdade, um grande projeto estético – com seus limites históricos e possibilidade específicas, é claro, como qualquer outro. Está na pura negatividade a crença na latência de algo na realidade social que não coincide com os discursos que se fazem sobre ela: é dela que emerge este mundo, e não do nada: ela o produziu, como produziu a seleção de 70 ou o nacionalismo entreguista. Se a repetição exaustiva do marginal ou do maldito simplesmente esvaziou essas expressões de sentido – assim como fez com aquela seja marginal, seja herói que segue-se estampando por aí em plena vigência das demandas da democracia representativa –, é diante da crença generalizada na teleologia de um discurso positivista que pode-se, de fato, como nos anos 1970, falar da margem como um projeto estético de alcance em sua negatividade.
O próprio Júlio Bressane no filme-ensaio Viola Chinesa: Meu Encontro com o Cinema Brasileiro (1975) parece aclarar um pouco este ponto e sua ligação com as imagens dos baixos-corporais colocados em cena neste projeto. Em seu diálogo com Grande Otelo – esta figura enorme que não cansa de calar dicotomias apressadas entre o popular e o intelectual –, Bressane afirma que não se pode confundir erotismo com essa rede de onanismo picareta que vem constituindo a mente cinematográfica contemporânea. Este ponto é crucial, e nos faz retornar ao sentido do corpo em jogo em Zézero. Não há negatividade-em-si em nenhum objeto: é necessário construí-la como discurso, ou a imagem se tornará objeto e positividade, será apropriada pelo discurso vigente. O corpo pode ser, assim, o corpo da chanchada: o gênero que, e veja só que sintomático, era fomentado pela ditadura, inclusive resultando nesse período em grande parte das maiores bilheterias da história do cinema nacional, como em Bem Dotado, o Homem de Itu (José Miziara, 1979), Como é Boa Nossa Empregada (Victor di Mello, 1973) ou Coisas Eróticas (Raffaele Rossi, 1982). Neste caso, o corpo é onanismo picareta, porque representado como objeto passivo de uma sexualidade heteronormativa que se expressa de maneira complacente, colocando o espectador como voyeur do óbvio, confirmando os termos do nexo social conservador – é isso que está em jogo criticamente em Zézero. Mas o corpo como erotismo, algo distinto disso, se traduz como desafio e resposta, potência de destituição da ordem, pulsão de materialização dos limites da experiência social. O cinema como erotismo é aquele que coloca o corpo – e, portanto, a sociedade – em situações que redimensionam sua imagem, alienam as impressões cristalizadas sobre si e se dobram sobre as experiências sociais como possibilidade.