Desejos reprimidos em Narciso Negro (1947, de Emeric Pressburger e Michael Powell)


Por Léo Costa

Após assistir ao longa Narciso Negro, é impressionante notar o quanto uma produção de 73 anos atrás era à frente do seu tempo. A trama traz algumas freiras tendo que trabalhar em uma região montanhosa e isolada na Índia. Lá, seus desejos reprimidos, lembranças e frustrações vem à tona, pondo em perigo sua perseverança na fé e na abstinência sexual de seus votos. Apesar de muitos filmes do cinema clássico optarem por uma ótica católica, alguns buscaram por questionar tais doutrinas. E é aqui que Narciso Negro se enquadra de forma mais sutil. 


O roteiro foi trabalhado de tal forma que o drama inicialmente apresentado, aos poucos, transforma-se em um inteligente suspense psicológico. Essa mutação na temática é gradual e nada óbvia, subvertendo o que achamos que veríamos de início. Fugindo de exageros e caricaturas dramáticas, vemos a construção psicológica das freiras e como os desafios deste remoto ambiente as muda, as questiona e as faz reavaliarem muitas coisas relacionadas as suas vidas. 

A direção da dupla britânica Emeric Pressburger e Michael Powell é segura, firme e extremamente competente. Aqui é preciso dizer que muito possivelmente a perfeição estética do longa se deve a Powell, diretor acima da média para a época, que futuramente seria responsável por A Tortura do Medo (1960), longa lançado juntamente de Psicose do Hitchcock, mas que ficou à sombra do mesmo. Powell e Pressburger dão primazia à uma perfeição técnica em Narciso Negro, com enquadramentos de câmera por vezes centralizados, por vezes trazendo-nos ângulos originais e impensados. Ainda temos belíssimos cenários, fotografia estonteante, figurinos e maquiagens de primeira linha e toda uma mise-en-scène pensada para nos transportar para dentro daquela atmosfera “exótica”, bela e desafiadora. 


A trilha sonora também se alia nessa criação de atmosfera, trazendo tanto faixas oníricas, como trilhas tensas, dignas de um filme de terror, principalmente conforme a narrativa caminha para um terceiro ato um tanto assustador. Mesmo que use-se de recursos hoje ultrapassados, visualmente e narrativamente é uma obra forte imageticamente, envelhecendo muito bem. 


A atuação da protagonista Deborah Kerr é potente, ela foi uma das grandes de sua geração, vide o assustador Os Inocentes de 1961, que serviu de inspiração para Os Outros. Sua personagem é firme e “fria” de início, mas ganha contornos frágeis conforme o tempo passa nas montanhas e lembranças de sua vida antes da devoção vem à mente. Suas frustrações com o passado se aliam ao medo do futuro, medo de não conseguir continuar com sua vocação espiritual. Esses flashbacks surpreendem pela ruptura do padrão convencional, se parecendo quase que um sonho, um faz de conta, lindamente filmados, como numa cena em que no passado ela caminha para dentro do escuro e retornando ao agora e aos desafios que enfrenta, aquela escuridão que um dia ela entrou se reflete agora nas difíceis escolhas que precisa fazer. Alguém alegre e colorida, agora amargurada e cinzenta.

Além de Deborah Kerr, Kathleen Byron cresce na metade final e no terceiro ato, trazendo uma entrega cênica arrebatadora, assustadora. Protagonista e coadjuvante são dois extremos de um mesmo dilema e o outrora drama, agora culmina em um confronto psicológico estarrecedor. 


É aqui que o roteiro assume seu lado crítico. Onde o filme poderia se mostrar defensor do catolicismo, na verdade se põe em xeque a questão da castidade, da carência, de manter uma certa postura diante da simplicidade e os desejos da vida. O rigoroso fervor religioso destrói sonhos, reprime desejos, frustra a vida das personagens e as abala psicologicamente. Quando estas são isoladas em um ambiente com cultura e permissividade diferentes, tudo se confunde. As pessoas, o clima e a ambientação em volta são uma constante “prova de fé”. 

Note como a altura da montanha dá a impressão de vertigem e isolamento do mundo lá em baixo, o forte e frio vento assobia o tempo todo, aumentando esta sensação de solidão. Os homens presentes em cena sempre surgem como atraentes de alguma forma, seja pelo auxílio que eles dão, seja pelas provocações dos mesmos. Há uma dificuldade das freiras de se conectarem com as pessoas locais e entenderem algumas coisas, como o guru que fez voto de silêncio e que medita o tempo todo. Há sutis elementos sensuais, como diálogos sobre o proibido, pinturas eróticas da cultura indiana e um improvável jovem casal que surge, onde Jean Simmons é a própria personificação da natural sensualidade feminina.


Todos esses elementos criam uma atmosfera sexual, mesmo sem mostrar nada demais, criando assim o conflito das personagens centrais. Portanto, Narciso Negro surge como uma obra-prima épica à frente do seu tempo, complexa, com camadas, trazendo perturbações, conflitos psicológicos, religiosos e culturais, com um visual espetacular e um clímax construído em uma tensão crescente e assustadora. Uma verdadeira joia do cinema, masterpiece!


Título Original: Black Narcissus

Direção: Emeric Pressburger Michael Powell (I)

Duração: 101 minutos

Elenco: Deborah Kerr, Sabu (II), David Farrar, Flora Robson, Esmond Knight, Jean Simmons, Kathleen Byron, Nancy Roberts.

Sinopse: Cinco freiras inglesas abrem uma escola e um hospital numa vila de remota região do Himalaia. A harmonia do local é ameaçada com a chegada de uma bela moça da região e de um jovem e rico herdeiro.

Trailer:

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