Perfil Bergman: Parte II

Na primeira parte do especial Perfil Bergman, foram apresentados alguns aspectos básicos sobre a vida e as obras do diretor Ingmar Bergman. Na matéria de hoje, iremos mais a fundo: de quais maneiras a infância de Bergman pode ter influenciado não apenas sua obra, mas também seu modo de criar e sua relação com suas equipes? As citações usadas nessa matéria vem da autobiografia do diretor, A Lanterna Mágica.
Liv Ullmann e Ingmar Bergman na ilha de Faro
Antes do grande cineasta, existia a criança, que no caso de Bergman cresceu acompanhada de diversos traumas. Seus pais eram bastante religiosos e castigos emocionais e físicos eram comuns em sua casa – dinâmicas que aumentavam também a tensão ele entre ele e seu irmão e irmã. A psicóloga Alice Miller, no livro O drama da criança bem dotada, explica que muitas vezes contextos como esse resultam em situações impossíveis para a criança: incapaz de associar sentimentos negativos aos pais que a criam, ela projeta a frustração e ódio em si própria ou naqueles ao seu redor. Décadas depois, a vítima adulta desse abuso pode nem sequer lembrar de sua infância, mas certamente estará convivendo com os efeitos emocionais dela.

Aos dezesseis anos, Bergman foi enviado para a Alemanha nazista para passar tempo com uma família alemã, e desenvolveu durante esse período um fascínio imenso por Adolf Hitler. Essa adoração só acabaria no início de sua vida adulta, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Em sua autobiografia, ele descreve como sua infância pode ter contribuído para esse acontecimento:

“A maior parte de nossa criação foi baseada em conceitos como pecado, confissão, punição, perdão e graça, fatores concretos em relações entre crianças, pais e Deus. Existia uma lógica inata a tudo isso que aceitávamos e acreditávamos entender. Esse fato pode muito bem ter contribuído para nossa surpreendente aceitação do Nazismo. Nunca ouvimos falar em liberdade e conhecíamos, menos ainda, seu gosto. Em um sistema hierárquico, todas as portas estão fechadas.”

Essas e outras experiências tiveram um profundo impacto na forma como Bergman trabalhava. Ao longo dos anos, ele criou uma disciplina emocional intensa como forma de organizar seu processo criativo e manter seus sentimentos sob controle. Bergman encontrou um lar para essa necessidade na ilha de Faro, onde gravaria diversos de seus filmes e eventualmente construiria uma casa para viver a então recente paixão com a atriz Liv Ullmann, que se desenvolveu durante as filmagens de Persona, em 1966. O romance entre os dois durou alguns anos, mas a situação se tornou insuportável e Ullmann deixou a ilha algum tempo depois. Mesmo separados, ela continuaria trabalhando com Bergman nas próximas décadas.
Bibi Andersson, Ingmar Bergman e Liv Ullmann durante as gravações de Persona, em 1965.
De forma semelhante, Bergman manteve uma relação com seus pais até o fim de suas vidas. Ele descreve a situação familiar em sua infância com uma empatia inicialmente surpreendente, mas que talvez faça sentido quando consideramos que Bergman eventualmente passou a viver sob o peso de seus próprios erros. Sobre seus pais, ele comenta:

“A família de um pastor vive como se estivesse em uma bandeja, desprotegida de outros olhos. O presbitério deve estar sempre aberto a críticas e comentários da congregação. Tanto meu pai quanto minha mãe eram perfeccionistas que se afundavam sob essa pressão irracional. O dia de trabalho era sem fim, o casamento difícil, a auto-disciplina rígida. Seus dois filhos refletiam características que eles puniam incessantemente em si mesmos. Acho que me saí melhor ao me transformar em um mentiroso. Criei uma pessoa externa que tinha muito pouco a ver com o verdadeiro eu. Como eu não sabia como manter minha criação e minha pessoa separadas, os danos tiveram consequências para minha vida e criatividade até a idade adulta. Às vezes tenho que me consolar com o fato de que aquele que viveu uma mentira ama a verdade.”

E então expõe a forma como isso tudo influenciou seu método de trabalho:

“Eu nunca sou o meu eu particular. Eu observo, registro, estabeleço e controlo. Eu sou o olho e o ouvido do ator. Eu sugiro, atraio, incentivo ou recuso. Eu não sou espontâneo, impulsivo ou um companheiro do ator. Apenas parece que eu sou. Se eu levantasse a máscara por um momento e dissesse o que realmente sinto, meus amigos se virariam contra mim e me jogariam pela janela. Apesar da máscara, eu não estou disfarçado. Minha intuição fala de forma rápida e clara. Estou totalmente presente. A máscara é um filtro através do qual nada irrelevantemente privado pode penetrar. Meu próprio tumulto precisa ser mantido em seu lugar.”

Chegamos ao fim de mais um especial e ao momento de outra recomendação. Dessa vez, o filme é Através de Um Espelho (1961). Harriet Andersson incorpora de forma brilhante diversos dos temas tratados na matéria acima, em especial a dinâmica entre relações familiares disfuncionais. O filme é também o primeiro dentre três filmes de Bergman que tem em seu cerne uma discussão sobre a relação entre a existência humana e a religião (Através de Um Espelho) (1961), Luz de Inverno (1963) e O Silêncio (1963)).


ATRAVÉS DE UM ESPELHO

Título Original: Såsom i en spegel

Direção: Ingmar Bergman

Duração: 91 minutos

Elenco: Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand, Max von Sydow, Lars Passgård.

Sinopse: Após passar tempo em um hospital psiquiátrico, Karin (Harriet Andersson) volta para casa. As relações entre ela e sua família logo fogem do controle conforme Karin se vê incapaz de controlar seus delírios e desejos perturbadores.


O que você achou das recomendações até agora? Deixe um comentário para falarmos mais sobre a obra de Ingmar Bergman e fique ligado para a próxima parte do especial!


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