The Outsider (2020, de Jason Bateman e Andrew Bernstein)

“Esse cara matou uma criança, ele quer evitar ser preso, mas tudo que ele faz depois é idiotice. (…) É como se estivesse implorando para ser pego, mas que tipo de criminoso faz isso?”

Vamos nos permitir quebrar a “quarta parede” por um momento, sim? O que você faria se fosse um detetive responsável pela investigação do assassinato brutal de um menino de onze anos, com diversas testemunhas, impressões digitais e vídeos de segurança apontando para uma mesma pessoa? Agora, imagine-se como o treinador da Liga Infantil de beisebol, professor de inglês e marido e pai exemplar, uma pessoa realmente querida na cidade. Como seria ser acusado e preso por um crime que você jura não ter cometido, de maneira absurdamente rápida e pública, fazendo com que em pouco tempo toda a cidade o veja como o principal suspeito? Ainda mais um crime que você também tem testemunhas, digitais e vídeos que o colocam no dia e hora do crime à cem quilômetros do local onde foi cometido. É com essa premissa que The Outsider começa a contar a montanha-russa de suspense e tensão que é a versão de Ralph Anderson (Ben Mendelsohn) e Terry Maitland (Jason Bateman) — respectivamente — do mesmo crime.


Cuidado apenas para não incorrer no erro de esperar do enredo mais uma história de tribunal ou policial investigativa. Aos conhecedores de King  autor do livro homônimo que inspirou a minissérie da HBO  não é necessário dizer que há muito mais camadas por baixo do que é inicialmente apresentado. Afinal, como uma mesma pessoa pode estar em dois lugares ao mesmo tempo? 
E o nome escolhido para adaptar a obra não fica para trás. Richard Price, autor e roteirista, assumiu o projeto depois de já ter adaptado algumas de suas obras para a tela, como The Color of Money e The Night Of. Coincidência ou não, esta última, adaptada também para a HBO, apresentava um protagonista acusado de um crime em que todas as provas pareciam incriminá-lo, ainda que este jurasse inocência. Será que no caso de Terry tudo não passa de uma máscara?

  

Seja qual for sua opinião sobre a inocência ou culpa do treinador, o fato é que The Outsider consegue estabelecer com rapidez e organicidade as personagens e suas motivações, os mergulhando em uma atmosfera repleta de luto, injustiças e uma espécie de “efeito borboleta” em que violência acaba gerando sempre mais violência pelo caminho. Não à toa um dos questionamentos levantados é justamente “e se, de vez em quando, confundirmos um demônio com um ser humano?”. Afinal, qual pergunta mais intrínseca à gênese do terror do que se os verdadeiros monstros não somos nós mesmos? Dito isso, não é surpresa — e aqui vou evitar ao máximo os spoilers — este ser um dos monstros mais “humanos” de King.

Mantendo a proposta do livro de apresentar diversas pistas ao longo de sua narrativa sem, no entanto, dar respostas antes do momento certo, a série ainda aproveita o termo “devorador de luto” ao máximo. Seja mostrando interesses pessoais e profissionais se sobrepondo à lei mesmo nos casos mais sádicos, como também evidenciando que há aqueles que buscam capitalizar até mesmo com a morte de um garoto sodomizado e sua pobre mãe infeliz. É uma ambientação, porquanto, crua e realista no que se propõe a mostrar, apresentando grande parte da história do livro em seus primeiros episódios. O que, então, foi abordado nas horas restantes?

Não se faz necessário dizer que quando se trata de transformar a história de um livro em audiovisual há dois fins prováveis para tal decisão: seguir o livro à risca, não apresentando nada novo, resultando em uma história completamente sem originalidade e anti-climática; ou mudar tanto a base a ponto de perder a essência original da história e deixar os fãs do livro — e muitas vezes o próprio autor — extremamente desgostosos. E sim, estou escrevendo essas linhas pensando em King publicando seus livros, até hoje, com referências ao filme O Iluminado — confesso ter virado um prazer pessoal meu achá-las , mas também à adaptação do autor de Laranja Mecânica — Anthony Burgess — de sua obra para uma peça de teatro, na qual ao final, um ator vestido de Kubrick — pelo visto ele não era muito do agrado dos autores — era expulso a pontapés do palco pelo resto do elenco. 

Price consegue, no entanto, encontrar um equilíbrio ideal entre criação e fidedignidade, delineando bem as personagens a ponto de algumas — como o caso de Ralph, no início e desenrolar da trama — ganharem um caráter ainda menos polarizado e de mais fácil empatia e conexão com o público. Até mesmo Holly (Cynthia Erivo), que gerou grande debate por ter sido a personagem com mais mudanças sofridas, ainda mais por ter participação na trilogia de King, Mr. Mercedes, trouxe novas camadas à personagem e novos questionamentos e problemáticas, claramente não sendo uma mudança “apenas porque sim”. 

De certa forma ele trabalha em cima do ritmo da obra e do contorno das personagens, e a isso soma-se o também autor policial Dennis Lehane que roteirizou dois episódios. Price capta exatamente aquilo que King quer dizer e realça, traduzindo para a linguagem cinematográfica, como fez Frank Darabont em Um Sonho de Liberdade— uma história de King com o protagonista condenado por dois crimes que não cometeu — Rob Reiner em Conta Comigo e até mesmo Andy Muschietti em IT- A Coisa, mais recentemente, ao substituir algumas cenas de gosto duvidoso e traduzir a mensagem de outro modo para as telas do cinema. 

Outro ponto crucial para o sucesso da trama é a atuação fenomenal do elenco, com ênfase em Ben Mendelsohn e Cynthia Erivo, que inclusive é introduzida na trama sabiamente bem antes do que King propõe no livro, dando mais peso para a personagem e estabelecendo entre ela e Ralph  e entre o “inexplicável” e o racional   — uma relação mais “suave” para os espectadores digerirem. Além de que, possibilita um maior aprofundamento de seus traumas pessoais e estabelece uma Holly mais autoconfiante que, somado à sua inteligência ímpar, acaba por recordar uma versão feminina e não sociopata de Sherlock.


Já sendo comparada com True Detective e Watchmen, alguns fãs afirmam ser essa minissérie a “continuação que eles merecem” de uma das duas séries acima ou até mesmo veem em The Outsider fatores que superariam às produções da mesma emissora. Mas engana-se quem pensa que as comparações terminam entre as obras da HBO. (Atenção: O próximo parágrafo pode conter spoilers. Para quem ainda não leu ou assistiu e não deseja saber mais detalhes antes, pule para o parágrafo depois da foto abaixo)

O El Cuco de The Outsider foi visto como uma espécie mais macabra e sádica de Pennywise, o palhaço de IT – A Coisa. Para quem não consegue ver as semelhanças eu vou explicar. Muito foi discutido a respeito de ambos se metamorfosearem e se alimentarem de crianças e de seus medos — eis aí um ponto em que El Cuco já se destoa de Pennywise, visto que El Cuco não somente se alimenta das crianças, mas sodomizava suas vítimas também, além de saborear o luto e sofrimento de seus entes queridos, levando-nos à morte um por um. Um fator que corrobora ainda mais essa comparação é a seguinte fala do tenente Sablo, ao falar sobre Terry para Ralph, “assassino de crianças com uniforme da Liga Infantil? Só pode ser Gacy, o palhaço assassino”. Para os desavisados, John Wayne Gacy foi um serial killer que se vestia de palhaço e atraia crianças para sua casa, as matando depois de abusar sexualmente delas. Ele serviu de principal inspiração para Pennywise e… bem, lembra bastante os crimes de El Cuco, não?

Ainda sobre referências e lembrar figuras reais, The Outsider consegue tecer com maestria comentários sobre a política de Donald Trump a ponto de os fãs facilmente identificarem o ponto a ser tratado nos momentos em questão. E se antes muito se especulava sobre o autor ter conseguido prever o governo Trump em A Zona Morta (1979), com Greg Stillson, e Sob a Redoma (2009), com  Big Jim Rennie — além do coronavírus, em sua obra A Dança da Morte (1978) — e King negava, ao dizer ter escrito bem antes de saber sequer da candidatura de Donald, agora fica um pouco mais difícil. Como o thriller que dá origem à série foi publicado em maio de 2018 e Trump já estava no poder… bem, o que vocês acham?

Fato é, o autor claramente é contra o presidente — que também já bloqueou o mestre no Twitter em 2017 — e já chegou a falar abertamente que “o fato de esse cara ter o dedo no botão nuclear é pior do que qualquer história de terror que jamais escrevi”. Muito mais do que nos dizer sobre suas crenças e valores, o comentário de King aponta para um ponto também comentado por Price e que, pessoalmente fico feliz por ter sido esclarecido por eles. O público, de modo geral, relaciona terror, ou “bom terror” (com várias aspas, preciso dizer), com sustos e sentir medo constantemente. Tanto que filmes maravilhosos, como o caso de A Bruxa— deixando de lado a publicidade que errou o foco do público alvo — terem sido considerados fracos por não proporcionarem os famosos gritos ou pulos nas cadeiras do cinema. E Price resume em uma frase o que tanto incomoda nessa expectativa de apenas susto atrás de susto: “horror é ‘boo!’, enquanto terror é mais sublime, mais sutil, é manter o mais humano possível, até mesmo a criatura derradeira. E foi assim que eu levei o projeto”. 


De modo geral, a minissérie consegue trazer uma combinação incrível de bons atores, sequências em nada verborrágicas ou extremamente expositivas e originalidade e fidedignidade à obra em quantias exatas para exprimir a mensagem a que se propõe. O único momento que parece destoar do compasso é o início do primeiro episódio, que apresenta uma certa dormência em dissonância com o ritmo já frenético que poderia ter lançado mão de montagem paralela proposto no livro, entre interrogatórios e acontecimentos presentes. Ademais, alguns planos eventuais parecem enquadrados tão fechados para gerar uma sensação de sufocamento e mal-estar que acabam quase comprometendo a qualidade da imagem na tela. Ficou um sentimento, também, de “quero mais” em relação ao tempo de tela de Bateman como Maitland; afinal, se podem colocar Holly antes, por que não explorar um pouco mais Terry, não é mesmo?


Título Original: The Outsider

Direção: Jason Bateman e Andrew Bernstein

Episódios: 10

Duração: 60 minutos

Elenco: Ben Mendelsohn, Cynthia Erivo, Jason Bateman, Julianne Nicholson, Mare Winningham, Bill Camp, Paddy Considine, Yul Vazquez, Marc Menchaca e Jeremy Bobb. 

Sinopse: O corpo de um menino de onze anos brutalmente assassinado é encontrado abandonado no parque da cidade. Testemunhas, impressões digitais e vídeos de segurança apontam como criminoso uma das figuras mais conhecidas, queridas e respeitadas da cidade – Terry Maitland, treinador da Liga Infantil de beisebol, professor de inglês, casado e pai de duas filhas. O detetive Ralph Anderson, balançado entre não querer e precisar aceitar o fato, ordena uma prisão bastante pública, fazendo com que em pouco tempo todos na cidade relacionem o crime ao treinador. No entanto, conforme a investigação avança, a história se transforma em uma montanha-russa repleta de mistérios e pronta para levar o detetive, e quem mais entrar no caminho, em um passeio repleto de horror e pesadelos dos quais é impossível escapar.

Trailer:
E você, gostou da adaptação de mais uma obra de King para as telas? O que acha de uma continuação? Deixa aqui embaixo nos comentários! 👥




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