A Eternidade Simples de Flávio Migliaccio

Sabemos que morte e vida não se redimem uma à outra: não se compensam, não se explicam, não formam um discurso harmonioso. Por isto, diante de tantas especulações e leituras apressadas sobre um acontecimento tão doloroso e significativo – da mesma maneira como se viu após a morte de Walmor Chagas alguns anos atrás –, cabe a nós, que aqui ainda estamos diante da multidão do mundo, ser responsáveis com o que concluímos e com os fechos que damos a trajetórias que em muito nos escapam. É hora de falar da vida, portanto.
Flávio Migliaccio foi um artista dotado de uma característica muito rara: a naturalidade da contenção. Como um João Gilberto a dedilhar um violão, Migliaccio parecia propor algo como uma ilha impossível de honestidade dentro da vigência plena do mar da criação, isto é, um lugar complexo em que atuar e não-atuar, fingir e não-fingir pareciam se encontrar como pares suspensos que conseguiam, de lado a lado, amplificar um ao outro: a angústia singela dos olhos de Migliaccio davam força a todo o artifício da obra; todo este artifício, por sua vez, fazia com que a naturalidade daquele olhar se destacasse ainda mais como um momento de verdade possível.
Por isso, numa trajetória de mais de 60 anos de representação, destacam-se aqui, em direção ao começo, claro, papéis de Flávio Migliaccio que convergem como estes pontos de uma verdade dolorosa, explorados brilhantemente por artistas do nível de Glauber Rocha, Eduardo Coutinho, Roberto Santos, Marcos Farias e Domingos de Oliveira. Não há encontro mais bonito do que aquele que revela algo sobre todos que ali estão.
Em O Homem que Comprou o Mundo (Eduardo Coutinho, 1968) Migliaccio parece encontrar o grau-zero de uma mistura de angústia, deslumbramento e confusão contidos que se alternam na construção de um personagem tão interessante quanto José Guerra. Guerra é um funcionário público simples que recebe casualmente de um indiano moribundo um cheque de 100 mil strickmas, uma espécie de herança deixada por aquele homem em vias de morrer. Ao tentar descontar o cheque, logo se descobre que este valor corresponde a algo superior a toda a riqueza do mundo somada, o que faz do homem a pessoa mais rica na terra. A partir daí, o filme torna-se uma espécie de O Processo brasileiro, quando interesses políticos internos e externos alheios à vontade do pacato José Guerra transformam sua vida em um inferno, e o fazem se arrepender de ter tido tamanha sorte. Migliaccio oferece ao longo do filme uma raríssima sensibilidade ao representar um homem sem atributos, contrastando com a enorme verborragia dos discursos sobre a pátria e os interesses nacionais que jorram de todo lado: ele é um ponto perfeito para lançar luz à falsidade da ideologia que tenta se sobrepor à verdade da vida dos indivíduos.

Não é coincidência que, em Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), Flávio Migliaccio esteja em um papel em muitos aspectos similar ao de O Homem que Comprou o Mundo. Aqui, ele surge encarnando um homem do povo – sem nome mesmo – que diante da proliferação insuportável dos discursos tenta dar voz à sua voz. Fala por pouco tempo, tem os olhos baixos e perdidos e, nisso, novamente, parece ser um lugar de verdade diante das vozes sem corpo que bradam projetos sociais vazios e verdades absolutas incompreensíveis. O homem do povo dá testemunha de si mesmo através de sua fala sobre a miséria e a fome que passa junto aos sete filhos e à esposa, sendo brutalmente interrompido e sufocado justamente pela verdade que denuncia a mentira da configuração democrática em cena. Ecoando tão longamente em suas pausas e reticências, Migliaccio não poderia ter proposto um contraste maior entre sua atuação e o transe que dá título, tese e forma ao filme de Glauber Rocha.
Por fim, dentre dezenas de momentos que se poderiam aqui destacar, é impossível deixar passar a abertura de Todas as Mulheres do Mundo (Domingos de Oliveira, 1966), sem dúvidas uma das melhores de todos os tempos no nosso cinema. Ali, Migliaccio consegue dar corpo a um homem que não encontra lugar numa sociedade em que as mulheres passam a contestar a função paterna: ele surge em cena, então, desconcertado, inibido, lamurioso, criando outra vez um ponto perfeito para contrastar com a naturalidade de Paulo, o personagem principal que se dá bem com todos (e todas), que é simpático, jovem e bonito sem esforço. Em cerca de 4 minutos de cena, nosso ator consegue oferecer um personagem que, durante de todo o longa, justamente por sua ausência, consegue lançar um plano a mais para compreender a trajetória de Paulo rumo a sua acomodação final: ele será, mais uma vez, o testemunho do lado de fora daquilo que apareceria como único e objetivo.
Flávio Migliaccio, para muito além dos mirrados e apressados exemplos que aqui constam, foi o ator perfeito para dar vazão a personagens que conseguiam ser, em sua simplicidade, enormemente complexos. Existe muita valia em saber se impor pela altura e pela ostensividade, mas há poucas coisas mais difíceis do que conseguir se firmar a partir da singeleza, da contenção, do arroubo súbito, da capacidade de produzir angústia com apenas um golpe de olhar. Foi assim que Migliaccio conseguiu transitar tão bem entre gêneros tão diversos e construir tão longa e diversa carreira. E é isto que falta àqueles que estão dispostos se apropriar da imagem de um homem cuja grandeza foi, justamente, saber se mostrar como sendo apenas um homem.
Vitor Ribeiro


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