Crítica: Veneza (2019, de Miguel Falabella)

         

  
     Longa-metragem de Miguel Falabella que narra a história de uma prostituta idosa que sonha em ir até Veneza encontrar seu velho amado. Falabella é conhecido por ser um dramaturgo e diretor que tem empatia pelas minorias e sempre se interessou por contar histórias de pessoas comuns, mas que nem por isso deixam de viverem histórias fantásticas. 

    Falabella disse que a ideia de gravar este filme nasceu há 10 anos atrás quando assistiu à peça que narra a mesma história. Então a vontade de adaptá-la para o cinema o consumiu, e durante muitos anos ele maturou como contá-la. 

     Que Miguel Falabella é um ótimo artista todos nós sabemos, mas ele foi para outro nível após a direção desse filme. Atualmente séries, filmes e novelas estão trocando estéticas visuais entre si, e estão cada vez mais parecidos; mas eu não imaginava que Veneza teria um preciosismo tão belo, delicado e poético como teve. Falabella se superou, e surpreendeu a todos por entregar uma estética sofisticada e essencialmente cinematográfica. Não teve nada de “escrachado”, nem vulgar. 

      Veneza narra uma história de uma família nada convencional formada por pessoas que não estão ligadas por laços de sangue, mas todas querem o melhor para a sua matriarca: que ela encontre seu amado em Veneza.

     Com um elenco maravilhoso que conta com Dira Paes, Carmen Maura, Eduardo Moscovis, Danielle Winits e Carol Castro, o filme traz personagens nada óbvios, bem como seus histórias, desejos e sonhos.
      Dira Paes e Eduardo Moscovis demonstram que se amam de verdade, mas isso fica mais subjetivo no filme, deixando a gente sempre torcendo por eles, e com gostinho de “quero mais”.



       Carol Castro é uma das garotas de programa que se apaixona por um de seus clientes, que é bem mais novo que ela. O rapaz deseja ser uma mulher, mas também é apaixonado por ela, ou seja, ele quer se tornar uma mulher, mas também se sente atraído por mulheres. Os pombinhos apaixonados fazem planos de ir pra São Paulo e serem como querem ser. 

      Fiquei encantada com a profundidade de cada personagem. Quanto mais cheios de detalhes, mais reais ele se tornam; e em Veneza os personagens são assim de fato! Cada um possui sua dualidade, suas ironias, complexidades e suas histórias pregressas muito bem definidas. Uma delas é a história da matriarca, que quando jovem conheceu seu amado no prostíbulo, e este ofereceu-lhe uma vida de luxo em Veneza, para que ela fosse sua esposa legítima. Mas ela acaba por recusar, pois seu sonho sempre fora ter o seu próprio prostíbulo e administrá-lo. Isso mostra muito sobre como a personagem foi influenciada por seu meio. Ela não tinha vontade de ter outra vida, pois o auge da vida que qualquer garota poderia ter naquele meio era ser dona da sua própria “casa vermelha”. 


      “Gringa” – apelido que recebeu por ser espanhola – é uma personagem de muita fibra. Muito teimosa, determinada, e por isso quando colocou na cabeça a ideia fixa de ter seu próprio bordel, não conseguia pensar em viver de outra forma. Ela de fato havia se apaixonado pelo italiano, mas não abriu mão de seus sonhos. Parte da sua personalidade é ser orgulhosa também, então acredito que ela acabou por perceber muito tarde que o amava de verdade. Os anos se passaram e, por mais que tivesse conseguido o que queria, talvez ela não se sentisse completa porque quem amava não estava ao seu lado. Talvez agora, no fim da vida, com a idade pesando sobre seus ombros, ela quisesse ter com quem dividir o restinho de vida que tinha, já que os anos anteriores não passou ao lado do amado. Esta é só a minha interpretação dos fatos, mas o que sabemos com certeza é que Gringa quer ir encontrar o amado em Veneza e quer ser perdoada; ou seja, em algum grau eu devo ter acertado que ela se arrepende um pouco das suas decisões. Acho que não tanto de ter conquistado o que sempre quis: o bordel, mas se arrepende de não ter pedido para ele ficar ao seu lado, de não deixar claro que também o amava, ou de, depois de ter conseguido seu bordel, não ter ido encontrá-lo em Veneza. 




      Ao mesmo tempo, admiro muito a determinação da personagem, que não largou o que sempre quis e acreditou. Naquele momento talvez a única perspectiva de vida que ela tinha era a de ser dona de um bordel. Não imaginava que havia mais do que isso para se tornar. E não imaginava o quanto o amava. Naquele momento ele lhe ofereceu uma vida que ela não queria, ou que sequer tinha noção do que significava. 




      Outra coisa muito interessante é que não fica claro em que época se passa o filme, e nem sequer o lugar. Isso é incrível e poucos filmes brasileiros fazem esse tipo de “brincadeira”. Não saber a época do filme é realmente algo surreal e que confere ainda mais esse tom místico para o filme; bem como traz a reflexão sobre se antigamente as coisas eram ou não tão diferentes de como são agora. 
      
      A fotografia do filme é lindíssima e composta apenas por luzes duras. Temos cenas de sexo explícito, porém de maneira poética, não rasa e pornográfica. A iluminação às vezes lembra um pouco a de teatro, e isso é uma brincadeira muito interessante. 
  
     Só o que talvez não tenha me agradado tanto é que, se por um lado não é uma história escrachada que envolve sexo, por outro eu também não acho que deveríamos romancear a vida na prostituição. 

      Sabendo que uma passagem pra Veneza seria absurdamente cara para que elas conseguissem pagar, as prostitutas têm a ideia de pedir ajuda para um circo que está na cidade. Eles, então, devem fazer truques para fingir que estão levando a matriarca para Veneza. Como a mulher de idade já está cega e não tão lúcida, ela acaba sendo convencida. O combinado é que, o circo os ajudaria a levar Gringa para o “exterior” e em troca as prostitutas se deitariam de graça com todos os homens do circo. Isso foi encarado como engraçado pela maioria do público que assistia ao filme, mas eu não acho tanta graça assim. Acho, na verdade foi uma prova de amor dolorida que as mulheres fizeram pela sua matriarca, que foi a única que as acolheu em dado momento de suas vidas.
 

     
Miguel Falabella quis realmente fazer dessa situação uma coisa descontraída, mas para mim só ficou desconfortável mesmo. Mais uma vez a objetificação do corpo das mulheres. Como se ser uma garota de programa fosse algo simples e não envolvesse a saúde, o corpo e a vida de um indivíduo que também tem seus próprios desejos. 


  De forma alguma pretendo culpar Miguel Falabella por todo o sexismo e machismo do mundo, mas não passo pano para algumas passagens do filme que me incomodaram nesse sentido. E cada um pode e deve pensar como quiser. Todos devem ter seu direito à interpretação e à expressão da mesma. Só deixo aqui os pontos negativos que absorvi do filme. 

    Em contrapartida, trata-se de um filme muito emocionante em que atuação, decupagem, arte, fotografia e trilha estão em total harmonia. É um filme que fala sobre amor, família, amizade, mas acima de tudo dos nossos sonhos, e que nunca devemos abrir mão deles. É verdade que podemos dar boas risadas com o filme, mas não de maneira tão “escrachada”. É um filme que também consegue nos emocionar no melhor sentido da palavra. Acredito que tenha até certa metáfora entre a concretização da viagem da matriarca em relação ao cinema. Em certo momento, a personagem de Dira Paes diz: “Vai dar certo! Ela vai acreditar porque quer acreditar”. E o cinema não é exatamente isso? Nós nos permitimos adentrar um recinto escuro com uma telona para justamente viver aquela vida naquele universo por pelo menos duas horas. E acreditamos nisso. Amamos, sofremos, lutamos, sentimos. 




      Veneza é um dos melhores filmes brasileiros não só desse ano, mas de todos já produzidos! E sua beleza poética ficará para a eternidade. Falabella se superou e superou muitos outros diretores “velhos de guerra” com formação cinematográfica de fato. Veneza é um filme delicado e poético sobre o amor pelos sonhos, o poder da imaginação e da união da família/e dos amigos.
Título Original:  Veneza

Direção: Miguel Falabella

Duração: 91 minutos

Elenco: Dira Paes, Carmen Maura, Eduardo Moscovis, Danielle Winits, Carol Castro

Sinopse: Gringa (Carmen Maura), é dona de um bordel no interior do Brasil e seu maior desejo, agora na terceira idade, é reencontrar seu amado em Veneza e pedir perdão por tê-lo abandonado quando mais jovem. Para levá-la à cidade italiana, Tonho (Eduardo Moscovis), Rita (Dira Paes) e as outras prostitutas idealizam um fantástico plano com a ajuda de uma trupe circense.

Trailer:


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