Crítica: Diários de Classe (2017, de Maria Carolina da Silva e Igor Souza)

Documentários costumam ter uma força que poucos filmes tem. Digo isso pois, por melhores que sejam os atores em cena, um documentário bem feito e bem dirigido capta com maestria a naturalidade do objeto em questão.


Essa naturalidade costuma vir carregada de uma realidade que por vezes emociona de tal forma que chega a machucar. Este é o caso de Diários de Classe, um longa que nos mostrará a dura realidade enfrentada por três mulheres baianas durante a tentativa de conseguirem alcançar um nível mínimo de educação escolar.




Uma está encarcerada e assiste às aulas da “pro” (como costumam chamar a professora) pensando em sua liberdade, já que foi enquadrada injustamente. A outra é uma empregada doméstica que estuda à noite e leva junto sua filha, já que a creche não funciona. E a terceira é uma transexual que luta não somente para estudar, mas sobretudo, sobreviver. 


O que elas tem em comum? São negras e pobres.


Cada relato feito e cada situação mostrada funcionam como um choque dolorido de realidade. 


Veja bem, eu e você que me lê já somos privilegiados só pelo fato de podermos escrever e ler em uma plataforma digital. Obviamente existem níveis de privilégios que costumam separar com uma grande distância alguns grupos de outros, porém quando comparamos classes mais favorecidas e classes totalmente desfavorecidas, a diferença se transforma em um abismo sem fim.


Pensar que uma pessoa é agredida e quase morta pelo simples fato de ser quem é, ou que pelo fato de você não ter conhecimento suficiente para saber de seus direitos você seja detida e encarcerada por uma situação pífia, ou ainda ter que se sujeitar à vontade dos patrões e ter de interromper o sonho do estudo; todas essa situações podem parecer ridículas para quem já está em uma posição de certo conforto social, mas é simplesmente a realidade enfrentada por grande parte da população, esquecida pelo governo, ignorada pela sociedade hipócrita e preconceituosa e retratada aqui.


Dentre várias questões levantadas, de forma muito sutil na maioria das vezes, vemos o questionamento para com a condição da classe operária (que muitas vezes não se enxerga como deveria), o encarceramento indevido de mulheres negras e pobres, a violência (física e psicológica) contra a população LGBTQI+, planejamento familiar (ou a falta dele), lugares sociais e associação ao gênero, religião como forma de salvação ilusória, e tantas outras que são postas em cena e levam à uma profunda reflexão e revisão de valores.



– Os escravos sabiam que aquela situação não tava boa para eles. Eles não queriam aquilo para eles. Só que eles não conseguiam sair.

– Aqui dentro tem um bocado de escravo, pro (…). Isso é escravidão das leis (…).

O diálogo acima ocorre em uma das salas de aula mostradas no documentário e refletem claramente o paradoxo do pobre e negro: nós queremos estudar para poder trabalhar e ter um futuro mais digno, mas para estudar nós precisamos de trabalhar porque não conseguimos suprir nossas necessidades apenas com o estudo, mas como vamos estudar se estamos trabalhando? E como vamos trabalhar se estamos estudando? Pegou a visão?

E se você é negro, pobre e LGBTQI+ a situação complica ainda mais: além de tentar trabalhar e tentar estudar, você ainda tem que tentar sobreviver. E até mesmo num ambiente que deveria ser acolhedor, como a escola deve ser, uma das violações mais graves é feita: a não aceitação do gênero com o qual a pessoa se identifica. 


E assim, caminhamos pela recorte da trajetória de nossas mulheres, e vemos que finais felizes acontecem somente nos filmes e a realidade nua e crua está longe de ser algo redondo e bem resolvido. Engolidas pelo sistema, a essas mulheres resta sobreviver e quando lhes sobrar força, tentar lutar.


É interessante enfatizar o belíssimo trabalho de montagem e ainda a ótima fotografia aliada à uma trilha sonora tímida, porém eficiente quando ocorre, mas há tanto para dizer sobre as questões do filme em si, que isso acaba não parecendo uma prioridade.


Neste 8 de março não dê flores para nenhuma mulher. Não mande mensagens com poeminhas bonitinhos e não use aquela máxima “o lugar da mulher é onde ela quiser”


Meu conselho? Veja este filme e tantos outros (recomendo fortemente 25 de julho: Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa) que retratam a realidade da maioria desfavorecida e reveja seus conceitos.


Se o lugar da mulher fosse realmente onde ela quisesse, a realidade seria totalmente diferente. Oportunidades não existem para todas.



Título Original: Diários de Classe


Direção: Maria Carolina da Silva e Igor Souza

Duração: 76 minutos

Elenco: Maria José dos Santos, Tifany Moura, Vânia Costa e outros.

Sinopse: Em três salas de aula para adultos se destacam três mulheres que têm em comum o desejo de melhorar de vida por meio do estudo. Vânia frequenta as aulas no presídio feminino enquanto acompanha o lento desenrolar de seu confuso processo criminal, a empregada doméstica Maria José todas as noites vai às aulas da Educação de Jovens e Adultos levando junto a filha pequena, e a adolescente transsexual Tifany busca se adaptar à vida em abrigo e ser tratada pelo nome que escolheu, não mais pelo que consta em seus documentos.

Trailer:

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