Crítica: Green Book (2018, de Peter Farrelly)


Indicado ao Oscar de melhor filme, melhor roteiro, e ambos os protagonistas como melhor ator e melhor ator coadjuvante, Green Book conta a história de um motorista de táxi racista, Tony Lip (Viggo Mortensen),  que, ao precisar de emprego, aceita trabalhar como motorista para um famoso e prestigiado pianista negro, Dr. Don Don Shirley (Mahershala Ali). Temos aqui uma premissa bem conflituosa e filmisticamente promissora. Afinal, filmes sobre racismo, quando bem trabalhados, nunca são excessos, muito menos desnecessários, mas aqui precisamos nos atentar aos detalhes que esse filme carrega. Para tal, talvez essa crítica soe mais como uma análise do que uma avaliação de questões estruturais de uma obra cinematográfica, como fotografia e direção. Estas não serão ignoradas, mas darei importância maior ao tema que o filme aborda, e como e por quem este fora abordado.


Começando pela seguinte premissa: o filme diferencia gênero, raça e classe. Coloca estes fatores como diferentes e em simultâneas formas na vida de uma pessoa, que a leva a diferentes gostos, diferentes comportamentos. Vou utilizar de uma teoria sociológica aqui mas com a promessa de não fazer ninguém bocejar durante a leitura do texto (é por um bem maior, juro). O que resumidamente é chamado de “teoria dos campos”, de Pierre Bourdieu, ajuda a entender a construção de gosto através de diferentes motivos, como também gênero, raça e classe. Através de aprendizados da vida, de espaços e de socializações com quem dividimos coisas em comum, construímos lógicas de consumo e comportamento, assim como regras que tornam um campo, como música clássica, restrito, somente aqueles que conhecem suas regras e formas de comportamento podem participar.

No campo da música clássica, em que existe uma “regra” de que pianistas são brancos, triplica o esforço de um negro a ascender e chegar numa posição de prestígio, de legitimação. A ideia aqui é identificar essas regras e colocá-las em uma posição de mudança, já que são socialmente construídas, absorvidas e perpassadas através das gerações. Não existe alguma coisa escrita que institua essa regra, e essa é a crueldade do racismo, não é literalmente ensinado mas ainda sim é aprendido. E é aqui que entramos no contexto do filme.

Green Book trata exatamente disso, de como essas regras delimitam papeis e dificultam, ou facilitam, que determinadas pessoas adentrem determinados ambientes. O nome green book vem de um guia de viagens para “pessoas de cor”, contendo hotéis, restaurantes e bares permitidos. Desse ponto, vemos a todo momento a pressuposição de que Dr. Shirley é visto como um elemento externo ao mundo em que vive, mesmo possuindo dinheiro o suficiente para viver em meio ao luxo, erudito o suficiente para argumentar perfeitamente sobre artes, filosofia, e tocar o instrumento que mais ama. Sua bagagem cultural é mais do que suficiente para o nível de conhecimento no campo artístico, mas este mesmo campo fora incorporado por outros recortes sociais, a classe branca e rica. O próprio personagem demonstra a dificuldade de ascensão dentro desse campo e a falta de legitimidade por ser negro. É interessante notar que podemos fazer o “teste do pescoço”, e procurar quantos personagens negros existem em todas as cenas que compõem o filme.


Tais regras colocam Tony em uma situação muito diferente da de Shirley. Tony passou a vida toda no Bronx, vem de uma família de italianos, todos racistas e mostrados como tais em cena, e trabalha, até então, como segurança de uma boate. Tony é declaradamente racista, chegando a jogar fora copos que dois homens negros usaram em sua casa. A única pessoa que mostra alguma empatia é Dolores (Linda Cardellini), sua esposa. O emprego de motorista vem a calhar em um momento complicado para a família, e Tony o vê como uma oportunidade, deixando claro que por um bom salário, não se importaria de ser o funcionário de um negro. A função não termina em ser um motorista, também há de ser segurança particular e quase que um representante do mundo branco, acompanhando a figura de Shirley. É comum no filme vermos cenas em que a legitimação de Shirley está em Tony, ou mesmo a frequente dúvida das pessoas de quem é chefe e de quem é o empregado. Há uma legitimação de Tony dentro deste universo que não conta seus conhecimentos, erudição ou habilidade, mas somente sua cor.

O que isso significa? Que dentro do campo artístico, principalmente da música clássica, Shirley enfrentou, enfrenta e enfrentará dificuldades por conta, unicamente, de sua cor. Até aqui, temos uma problemática muito bem trabalhada, se vista de forma mais superficial. Quando aprofundamos estas mesmas questões trabalhadas no filme, temos a impressão do personagem Tony como um suavizador dessas dificuldades. Uma espécie de heroísmo que deixa margem para o que chamam de white savior (o branco salvador), quando um personagem branco vem e salva um personagem negro ou uma comunidade negra de seus problemas causados pelo racismo. Ainda, a romantização de situações de racismo para que a plateia, geralmente uma plateia branca, tenha determinada empatia e se sinta diferente, recortada da realidade do filme.

O que gera uma realidade que choca, mas assopra em seguida, deixando uma sensação de que aquilo tudo não passa de um passado distante, e que hoje em dia não há tamanha segregação. Por isso, dá uma sensação gostosa de terminar o filme, e o fluxo deste é, também, suave, passando pelas suas duas horas de duração com rapidez. Não deixa de ter algum mérito sobre o tema passado e algumas mensagens mais do que importantes, mas peca justamente na forma que passa. Racismo exige determinada delicadeza em ser trabalhado, ainda mais quando um diretor branco que está tratando do tema. Precisa estar de acordo com as vozes daqueles que sofrem com tal estigma social. Quando o aparente destino do filme parece mais para aqueles que não sofrem, temos problemas.

Shirley é colocado como um personagem inteligente, mas que por alguma razão precisa de ajuda, precisa ser salvo, uma dependência que, sim, gera algum estranhamento. Tony, pelo contrário, não precisa disso, seu único ponto de ajuda é em escrever cartas para sua esposa de uma forma mais poética. A tentativa talvez tenha sido de colocar os dois personagens em uma relação de igualdade, um aprende com o outro e no final todos felizes e amadurecidos, mas nesta relação na construção do roteiro, temos muito mais um Shirley sendo salvo do que um Tony aprendendo alguma coisa, principalmente no que tange à sexualidade do pianista, ponto forçado e pincelado, ignorado nos momentos posteriores do filme. As
questões familiares no filme também ficam em um tom um pouco
descarrilhado. Tony, como o patriarca da sua família, convivendo com
Shirley, consegue desconstruir três gerações de italianos racistas com
apenas uma, ou duas, frases. Forçado, irreal e quase utópico. Ainda,
Shirley é mostrado como um personagem solitário e isolado de sua
família, ponto que a própria família de Shirley protestou, acusando o longa de excesso de romantização na relação dos dois, ocasionando em um pedido de desculpas do próprio
Mahershala Ali.

Em direção, temos ainda os escândalos em que o diretor do longa, Peter Farrelly, se envolveu. Este exibia sua genitália em público, para atores e produtores durante as gravações dos filmes que dirigira. Tais acusações levaram a sua retirada de concorrer a categoria de melhor direção, embora ainda esteja como melhor roteiro, ao qual possui coautoria. Um castigo pequeno para tais crimes, ainda mais em tempos de denúncias e mais denúncias de assédio em Hollywood. As atuações de Viggo Mortensen e Mahershala Ali são o forte do filme, justificando a indicação dos atores, mas deixando em aberto a real qualidade do filme para as demais.  

Um bom filme, dá pra se divertir e causar alguma emoção sincera, assim como aprendizados verdadeiros, mas não entra no mesmo patamar dos demais concorrentes. Em um ano que temos Pantera Negra e Infiltrados de Klan na mesma categoria, Green Book, infelizmente, fica para trás em sua temática.



Título Original: Green Book


Direção:
Peter Farrelly

Duração:
130 minutos

Elenco:
Mahershala Ali, Viggo Mortensen, Linda Cardellini e Sebastian Maniscalco

Sinopse: Quando Tony Lip (Viggo Mortensen), um segurança ítalo-americano, é contratado como motorista do Dr. Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista negro de classe alta, durante uma turnê pelo sul dos Estados Unidos, eles devem seguir o “O Guia” para leva-los aos poucos estabelecimentos que eram seguros para os afro-americanos. Confrontados com o racismo, o perigo – assim como pela humanidade e o humor inesperados – eles são forçados a deixar de lado as diferenças para sobreviver e prosperar nessa jornada.

 
Trailer:

 

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