Crítica: Acossado (1960, de Jean-Luc Godard)

Jean-Luc Godard, cineasta francês nascido em 1930, possui, devidamente, um lugar especial e extremamente particular em toda a evolução do material cinematográfico. O diretor é longamente conhecido por suas experimentações, suas subversões da linguagem, sua ousadia e, pelos que não o apreciam, por sua falta de sentido, seu vazio artístico e seu pedantismo. Acima de todos os rótulos, creio que Godard pode ser encaixado como alguém à parte (ou como uma “banda à parte”, se me permitem o trocadilho) em toda a concepção do processo cinematográfico.


Logicamente o cinema possui, em sua história, diversas mãos que ousaram experimentar através de milhares de maneiras, desde Vertov, passando por surrealistas como Svankmajer e Lynch, documentaristas como Jonas Mekas e artistas únicos como Andy Warhol. Contudo, é necessário olhar para a filmografia do francês através de uma ótica distinta: um posicionamento analítico que abarca a totalidade de sua obra e se insere em meio às diferenças entre os filmes do próprio diretor para explorar, comparando-os com o “clássico” cinema norte-americano já carimbado, a maneira como Godard procurou, a todo momento, transformar (e provocar) aquilo que já estava estabelecido e batido. O cineasta buscou sempre inovar, durante suas diversas “fases”, explorando aquilo que concerne à imagem, à narrativa, ao som, à montagem, porém sem a gratuidade simplesmente pela inovação, e sim buscando levar o cinema ao seu limite e procurando descobrir e expandir as suas sempre reconstruídas fronteiras. Como postula a célebre frase atribuída ao poeta russo Maiakóvski: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. E é justamente partindo desses princípios que podemos inserir Godard e sua trajetória cinematográfica no âmbito daquilo que foi mais revolucionário na evolução audiovisual. Pretendo aqui, através de vários textos, explorar a carreira desta gigante figura, passando pela maior parte de seus longa-metragens, através de críticas e, ocasionalmente, breves análises.

E antes de entrarmos em si na crítica de Acossado, é necessário, para contextualizar toda a construção do cinema de Godard, discorrer rapidamente sobre um movimento cinematográfico surgido na França nos anos 50, que se mostrou como uma das mais influentes e importantes expressões do cinema, ou talvez a mais: a Nouvelle Vague. O movimento surgiu através das mãos de vários jovens cineastas e críticos de cinema franceses que buscavam, inseridos nos movimentos contestatórios dos anos 50 e 60, trazer uma nova roupagem ao cinema francês, indo contra as “regras” já estabelecidas das formas de se fazer filmes perpetuadas pela indústria. Utilizando de produções de baixo orçamento, um grupo de jovens de vinte a trinta anos (dentre eles Godard, Truffaut, Varda, Chabrol, Resnais, Rivette e Rohmer) que colaboravam para a prestigiosa revista Cahiers du Cinéma, sob a supervisão de André Bazin, decidiram colocar a câmera na mão e a levar às ruas para retratar aquilo de mais pulsante que existia naquele momento: a juventude. E é por essa juventude que respirou a Nouvelle Vague, seja pelas narrativas que buscavam mostrar jovens perdidos e incertos, enfrentando seus vazios e seus medos, seja pela rebeldia jovial de subverter as bases tradicionais do cinema e tornar novamente viva a sétima arte. O movimento foi caracterizado pela inovação na montagem, na edição, na forma de se narrar as histórias, no modo de se conceber os planos: muita câmera na mão, cenas em ordens bagunçadas, experimentações visuais. E é através desses cineastas que buscaram explorar os limites da imagem que pôde surgir este que é um dos mais icônicos movimentos cinematográficos da história, cuja maior representatividade se encontra, justamente, na figura de Jean-Luc Godard.

Feito todo esse panorama, podemos começar a adentrar nos filmes do cineasta francês, cuja primeira obra é, justamente, Acossado. Esta que não apenas fez história ao ser uma das primeiras expressões da Nouvelle Vague, mas também que perpetua até hoje como um dos mais icônicos e expressivos produtos do audiovisual. A premissa do filme é relativamente simples, acompanhamos Michel Poiccard, um típico malandro que, após roubar um carro, assassina um policial na estrada e foge para Paris. Na cidade, encontra uma antiga amiga, Patricia Franchini, uma jovem americana independente que está lá para estudar. Ao longo da narrativa, seguimos o casal enquanto Michel aplica diversos golpes ao mesmo tempo em que tenta convencer Patricia a ficar consigo e fugir para Paris. Simultaneamente, a polícia busca descobrir o paradeiro do ladrão.

Para analisar Acossado cinematograficamente e todo seu impacto, é preciso, antes de tudo, notar que se trata de um filme de vanguarda. Palavra esta usada em seu estrito sentido de uma arte que se adianta, que busca estar à frente de seu tempo e trazer inovações. Godard propõe unicamente realizar uma obra que fuja dos padrões já estabelecidos e tornados comuns pelo cinema, especialmente no que concerne às técnicas de manipular a imagem e desenvolver a narrativa. Justamente por isso, vemos durante o filme diversas experimentações realizadas com a imagem, como planos-sequência muito bem elaborados, a subversão dos raccords (ou seja, o posicionamento da câmera em relação às personagens que dialogam e que traz um senso de continuidade), a experimentação com os cortes e a quebra da quarta parede. É necessário conceber que nos anos 60 esses recursos eram ainda pouco explorados perto da forma que são experimentados hoje em dia. Uma das mais icônicas cenas de Acossado é um diálogo em que Michel e Patricia viajam de carro e ele constantemente a elogia enquanto conversam sobre trivialidades. Godard posiciona a câmera na nuca da personagem, sem nunca a retirar dali, trazendo uma enorme inovação na maneira de filmar um diálogo em um carro. O diretor ainda insere diversos cortes secos que acompanham as falas das personagens e vão demonstrando a mudança do cenário, ao fundo, causando um enorme estranhamento, a princípio, no espectador, que se encontra desconcertado em meio à essa condução diferente da edição. E isso se insere justamente nos planos do diretor, nessa rebeldia cinematográfica de quebrar com os esteriótipos de uma forma absolutamente genial.

A trama do longa, por mais que seja deveras simples, nos conduz intimamente por uma juventude que não tem ideia do que fazer consigo mesma, ou seja, o roteiro abarca todas as incertezas de uma geração jogada ao vazio dos anos que marcam a passagem de tempo entre o pós-guerra e o marcante Maio de 68. Godard utiliza então esta narrativa, por vezes montada de uma forma bagunçada propositalmente para jogar o espectador na situação perdida das personagens, e a constrói recheada de referências culturais e abstrações filosóficas que transmitem solidamente o vazio que percorre aqueles jovens. Há uma gama enorme de referências culturais clássicas, passando pela música, pela literatura (Patricia cita Faulkner em uma cena marcante) e pelas artes plásticas em si, porém sem nunca deixar de remeter à uma das maiores inspirações para o longa em si: a atmosfera noir dos filmes norte-americanos. E aqui a própria inserção do diretor Jean-Pierre Melville como ator, um grande apreciador do noir, demonstra esta influência. Acossado constrói a todo momento essa atmosfera dos filmes norte-americanos para, logo em seguida, subverter sequencialmente a linguagem já fundamentada que perpetuou este gênero clássico de cinema.

Todo este tom dramático influenciado pelo cinema dos Estados Unidos é reforçado pela trilha sonora exímia com influências jazzísticas que dão um tom hora caótico, hora misterioso para o enredo. E isso se soma à concepção artística de Godard. A escolha dos atores também é muito precisa, as atuações são, por excelência, esvaziadas e estranhas, Jean-Paul Belmondo é muito eficiente ao imprimir a Michel o papel de um malandro vigarista muito esperto, que sempre se safa, mas que também possui seus desejos, por mais que estejam submetidos à sua esperteza. Ele imprime no personagem um tique de passar os dedos pelos lábios, em referência ao grande ator Humphrey Bogart. O espectador consegue entender desde o princípio o que rege a moralidade de Michel: simplesmente nada, não há moralidade. Poiccard chega a explanar em um momento, ao ser questionado por Patricia, que prefere o nada ao sofrimento. Ou seja, aqui recusa qualquer princípio moral que se coloque sobre si e o faça sofrer ou o aprisione, preferindo sempre sua própria ética em que faz o que quiser e a todo momento se sente livre, mesmo que sem um caminho.

A atuação de Jean Seberg toma um caminho oposto à de Belmondo por conta da personagem: Patricia é uma moça que se mostra, ao mesmo tempo, extremamente independente e indecisa, introspectiva em certos momentos e com uma presença marcante em outros. Ela representa, em suma, não apenas o lado perdido de Michel, mas também as indecisões de uma geração jovem que está diante de diversas possibilidades e próxima de muitas incertezas. É por isso que constantemente vemos a personagem em uma batalha própria para saber se ama ou não Michel, para saber se fica ou não em Paris, uma mulher forte em busca de objetivos, porém que para a todo o momento por conta de suas dúvidas. Godard presenteia-nos com planos belíssimos da atriz em conflito com sua própria interioridade e com a presença de Michel, colocando-a como uma figura muito bela e também muito ambiciosa. É Patricia que dá abertura para uma das mais icônicas cenas do longa, a entrevista com o escritor Parvulesco, interpretado por Melville.

Godard demonstra constantemente um domínio da mise-en-scène que abre o espaço para sua subversão da linguagem. O diretor é um enorme conhecedor da sétima arte e um grande consumidor de filmes, portanto sua relação com essa linguagem não é apenas de conhecimento e utilização, mas também de noção de seu futuro. Godard lê o cinema e o transforma assim como o cinema pede para ser transformado. Durante todo o longa há uma espécie de diálogo com o espectador que o coloca em um papel dentro da narrativa, mas também o distanciando e dizendo para si que “isto é um filme” e que o diretor sabe o que está fazendo quando sabota os próprios conceitos já estabelecidos de quem assiste. Por exemplo, quando Michel assassina o policial, Godard acelera de tal forma a cena que quase não conseguimos entender o que ocorre, portanto há um esvaziamento de um momento que, comumente, seria retratado de uma forma muito mais dramática. Há então uma perda de sentido para com o momento chave que conduz a narrativa, afinal, Michel apenas foge para Paris e encontra Patricia por conta deste acontecimento. Ou seja, o diretor distancia o espectador do que seria um ponto alto de dramaticidade no cinema mais clássico, fazendo-o não se importar com essa morte, ao passo que, no final, o diretor alonga uma das mortes de tal forma que temos assim um efeito contrário. Há um travelling magistral que leva densidade à cena e culmina num dos mais icônicos planos do filme, expresso em uma metalinguagem direta ao espectador.

Acossado se estabelece como uma das mais importantes obras do cinema ao mostrar que é possível explorar além das fronteiras já estabelecidas da linguagem. Pois cinema é uma linguagem como qualquer outra e possui suas especificidades. O papel do artista é então não mais do que elevá-lo aos seus limites e tentar, a todo o momento, romper com os mesmos para trazer à humanidade uma impressão nova acerca do objeto. Dessa forma, Godard se introduz, a partir de seu primeiro filme, como um mestre que consegue estabelecer um diálogo extremamente contemporâneo e de vanguarda, influenciando várias gerações que estavam por vir. O francês que buscava fazer um cinema diferente, estabeleceu-se como um dos maiores diretores de todos os tempos. Ou melhor, conseguiu cumprir a sentença enunciada como desejo pela personagem de Parvulesco. Quando Patricia pergunta a ele qual seu objetivo de vida, o escritor olha para a moça e enuncia: “Tornar-me imortal e, depois, morrer”. Por mais que ainda esteja vivo em seus 88 anos, Godard conseguiu uma certeza que facilita boa parte do processo: tornou-se, com o tempo, imortal perante toda a trajetória que compõe o cinema.


Título original: À bout de souffle

Direção: Jean-Luc Godard

Elenco: Jean Seberg, Jean-Paul Belmondo, Daniel Boulanger, Jean-Pierre Melville

Sinopse: Após roubar um carro em Marselha, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) ruma para Paris. No caminho mata um policial, que tentou prendê-lo por excesso de velocidade, e em Paris persuade a relutante Patricia Franchisi (Jean Seberg), uma estudante americana com quem se envolveu, para escondê-lo até receber o dinheiro que lhe devem. Michel promete a Patricia que irão juntos para a Itália, no entanto o crime de Michel está nos jornais e agora não há opção. Ele fica escondido no apartamento de Patricia, onde conversam, namoram, ele fala sobre a morte e ela diz que quer ficar grávida dele. Ele perde a consciência da situação na qual se encontra e anda pela cidade cometendo pequenos delitos, mas quando é visto por um informante começa o final da sua trágica perseguição.

Trailer:
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