Crítica: O Ódio Que Você Semeia (2018, de George Tilman, Jr.)


T.
H.
U.
G.

L.
I.
F.
E.

Vida bandida 


O ódio que você passa para as crianças f* todo mundo.

Tupac Shakur

O racismo está impregnado na cultura mundial. E ele está tão impregnado que muitas pessoas, e até mesmo negras (a quem o racismo mais castiga), proferem pensamentos e ideologias racistas sem ao menos parar para entenderem o quanto aquilo é tóxico, errado e autodestrutivo. Armando-se da odiosa onomatopeia “mimimi”, julgam a dor do próximo (e às vezes, até a de si mesmo) como ínfima, resolvendo muitas vezes não por o dedo na ferida e conversar abertamente sobre como toda essa estrutura é errada e precisa urgentemente mudar até (e inclusive!) nas pequenas atitudes.

No Brasil, é comum ouvir que não somos racistas. Que isso é descarado nos Estados Unidos, mas aqui não podemos nos dar ao luxo, por sermos miscigenados ao extremo. Que um caso ou outro mais escancarado não é suficiente para nos taxar como racistas. Quem dera esse conto de fadas realmente existisse por aqui… Talvez tenhamos o pior tipo de racismo existente: o velado. Aquele que se esconde nas camadas mais profundas de nosso cotidiano e faz a maioria acreditar que não é racista se proferir uma palavra de “brincadeira” ou se esconder a bolsa, celular, etc., quando vê um (a) preto (a) andando na rua. 


“Eu não sou racista, tenho até amigos que são negros…”

Sinto-me na obrigação de iniciar esta crítica com essa reflexão não somente enquanto negra, mas também como uma pessoa que busca a cada dia mais compreender um pouco o mundo, identificando essas mazelas e tentando, mesmo que de forma não tão arrebatadora, combater esse tipo de comportamento, procurando levar para as pessoas, não só de meu convívio, mas todas aquelas com quem eu puder me conectar, o pensamento crítico sobre o mundo que nos rodeia. Nada melhor que um filme como esse para expressar essa visão de forma dura, porém, bastante didática.

Logo no início conheceremos Starr (sim, com dois “erres”) Carter (Amandla Stenberg). Ela está com sua família, composta por sua mãe, Lisa (Regina Hall), seu pai, Maverick (Russell Hornsby), seu meio irmão, Seven (Lamar Johnson) e seu irmão mais novo, Sekani (T. J. Wright). Eles estão à mesa e o pai explica sobre como devem se portar quando forem abordados pela polícia e, principalmente, por não estranharem caso sejam abordados de forma mais dura ou virem o pai sendo abordado dessa forma, mas que de maneira alguma devem se esquecer de seu valor, da honra de serem quem são e de seus direitos, utilizando para isso o Programa dos Dez Pontos dos Panteras Negras (clique aqui para ler). Pode parecer uma conversa extremamente pesada para se ter com os filhos, principalmente se estes forem crianças, mas quando você não conhece o perigoso mundo em que vive, sabendo exatamente o que ele vai lhe oferecer, corre-se o risco de ser tragado por ele.


Assim, o tempo passa e conheceremos a rotina de Starr, já mais velha, com sua família no bairro de periferia onde mora (Garden Heights) e, ainda, na escola onde estuda (Williamson), qual fica em um bairro de classe média alta, com maioria dos estudantes brancos e com uma vida bem tranquila, sem maiores preocupações. A decisão de, não somente Starr mas também seus irmãos, estudarem em uma “escola de brancos” parte da preocupação dos pais para com a educação dos filhos, uma vez que a escola localizada no bairro possui três destinos fatídicos para os estudantes: levar porrada, ficar drogado ou ficar grávida.
E assim, Starr se divide em duas partes de sua vida: quando está no seu bairro, onde ela pode ser ela mesma e quando está na escola, onde sustenta uma “Starr versão 2” para não ser taxada de moradora do gueto ou algo do tipo, anulando sua própria identidade em busca de uma aprovação da maioria, que tentam agradar agregando o que acham “cool” da cultura negra no vocabulário e nos maneirismos. 
Falar gírias os tornam legais, mas me tornam do gueto

Num de seus momentos de maior liberdade, ela decide ir à uma festa com uma amiga (que é irmã de seu meio-irmão) e reencontra Khalil (Algee Smith), um antigo amigo de infância, seu primeiro crush. Claramente, os dois ainda possuem muita química e em uma conversa (durante um passeio de carro), que vai desde Tupac Shakur (um dos melhores diálogos do filme) até Harry Potter, eles são abordados por uma viatura. Starr, sabendo como deve se portar, orienta Khalil a fazer o mesmo, porém ele fica irritado com a abordagem, que julga ser desnecessária. Após um equívoco do policial, ao confundir uma escova de cabelo com uma arma, Khalil é baleado e Starr é a única testemunha do ocorrido.



Assim, acompanharemos o luto de Starr bem como sua luta para levar a verdade do que de fato ocorreu, pois, infelizmente, como Khalil estava envolvido no tráfico de drogas, os holofotes tendem a mudar a direção da tragédia ocorrida, de forma a justificar os atos injustificáveis. 


“E se fosse em um bairro de  brancos? E se fosse um cara branco de terno dirigindo uma Mercedes? Ele poderia ser um traficante, certo? (…) Você atiraria ou falaria “Mãos ao alto”?”


Mais do que nunca, o assunto está em voga, principalmente nos Estados Unidos, após a eleição de Donald Trump, que fora bastante apoiado por pessoas declaradamente racistas. Assim, se faz totalmente necessário discuti-lo, apontando as podres estruturas que embasam este comportamento, escancarando os problemas desde sua raiz. O filme aborda, de maneira muito segura e totalmente tocante, todo o ciclo que leva à uma tragédia como essa, começando na falta de oportunidades que uma criança tem nos subúrbios e como a vida no tráfico parece ser um caminho muito mais fácil para a tirar do mundo desequilibrado em que se encontra, seja por um lar desestruturado, seja por dificuldades financeiras e outros. 


Em parte pelo excelente roteiro de Audrey Wells, que desejo fortemente que seja lembrado nas principais premiações e, ainda, por um elenco afiadíssimo, com grande destaque para Amandla Stenberg, que nos entrega nuances muito bem trabalhados de sua personagem, provocando-nos total empatia para com sua dor e seus momentos de alegria, o filme acerta em ser uma referência atual para levar à reflexão sobre o ódio semeado através do racismo e seu impacto na vida de todas as pessoas, principalmente das gerações vindouras.




Com uma fotografia fantástica, contrastando grandemente os ‘mundos’ que Starr está inserida, imprimindo cores fortes e quentes quando ela está em seu bairro com a família e vizinhança e cores frias para quando ela está em sua escola, e ainda com uma trilha sonora bem trabalhada, incluindo músicas de Tupac Shakur e Kendrick Lamar (grandes nomes do rap/ hip hop americano), o filme é uma obra completa, original e de fácil linguagem. 


O único ponto que pode não agradar é o final do terceiro ato, que tem uma solução fácil demais e até mesmo pouco verossímil, mesmo que em nossos melhores sonhos, ela pudesse de fato existir e ocorrer na prática. Fica a impressão que a roteirista queria fazer um romance adolescente com um pano de fundo mais sério. A sorte é que o “pano de fundo” é tão bem trabalhado e desenvolvido, que o incômodo é pouco. 


Atual, necessário e emocionante (eu chorei de encher balde, me tocou profundamente), O Ódio Que Você Semeia, assim como Infiltrado na Klan, se tornam títulos atuais obrigatórios para se ver e refletir sobre o mundo perigoso em que vivemos, que tende a se tornar cada vez mais intolerante à medida que as pessoas não discutem sobre os problemas enraizados na cultura, preferindo ignorá-los e/ou continuar alimentando-os.

Black Lives Matter! (Vidas Negras Importam!)



Título Original: The Hate U Give

Direção: George Tilman, Jr.

Elenco: Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby, Anthony Mackie, Issa Rae, Common, Algee Smith, Sabrina Carpenter, K. J. Apa, Dominique Fishback, Lamar Johnson, T. J. Wright, Karan Kendrick e outros.

Sinopse: Starr Carter (Amandla Stenberg) é uma adolescente negra de dezesseis anos que presencia o assassinato de Khalil, seu melhor amigo, por um policial branco. Ela é forçada a testemunhar no tribunal por ser a única pessoa presente na cena do crime. Mesmo sofrendo uma série de chantagens, ela está disposta a dizer a verdade pela honra de seu amigo, custe o que custar.

Trailer:


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